SINDICATO DOS TRABALHADORES DO SERVIÇO AUTÔNOMO DE ÁGUA E ESGOTO DE JACAREÍ    

 

 

Nós votamos, eles elegem

Reforma política

Quando a farsa vira tragédia

Gritam Impeachment e querem a renúncia

Stálin mora na Cantareira

CÁLCULO PERCENTUAL DA DESPESA COM PESSOAL EM RELAÇÃO A RECEITA CORRENTE LÍQUIDA DO MUNICÍPIO - 2015

“A decisão de reajustar a tarifa é muito mais política do que técnica”

Quatro crises simultâneas e profundas significam a exaustão do modelo econômico

Desafios à educação escola

Cidadão é o maior penalizado por 20 anos de gestão irresponsável da água em SP

O que nos promete o ano que se inicia? ( por Waldemar Rossi)

Atentado ao Charlie Hebdo: porque não se trata de liberdade de expressão. ( por João Gabriel Vieira Bordin)

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas. ( por Jorge Luiz Souto Maior)

MINISTÉRIO AO GOSTO DO CAPITAL, PACOTE CONTRA OS TRABALHADORES, PACTO SOCIAL PARA TENTAR FREAR A LUTA DE CLASSES

‘É impostura ideológica enxergar diferenças substantivas de projeto entre PT e PSDB'

‘Há muito pouco que se esperar do próximo governo'

Os “sem água” de São Paulo - na pele de Alckmin

Voto nulo é alternativa democrática a dilema falso

Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos

‘Votos de protesto foram o que mais de perto representaram junho de 2013'

Crise da água em São Paulo é gerida de maneira política, diz professor da USP

O quartinho escuro da política

Relatório em Davos mostra que 85 pessoas detêm 46% da riqueza mundial

Direitos Sociais têm lugar subalterno na ‘economia política' da sucessão presidencial

Carta do MST às candidatas e candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais

‘Sempre que houver a menor ameaça de mobilização social, teremos suspensão de direitos básicos'

Os corruptos são acusados de ludibriar as regras do jogo, sem que os críticos da corrupção discutam o jogo ou sequer as regras.

Da convergência programática à eleição prévia do programa neoliberal

Obrigado Alemanha!

‘Nossa opção em São Paulo é poluir a água que está perto e captar a que está longe'

Mídia e Estado seguem em insidiosa ação de deslegitimação das mobilizações e incentivo à violência. ( por Valéria Nader e Gabriel Brito)

Sócrates e o Militante Governista

2014: instabilidade, incertezas e lutas

A Militarização do Discurso

Vandalismo e minhocas

‘O patrimônio público está sendo entregue aos grupos econômicos, sem contrapartida e compromisso'



REFLEXÃO


Reforma Política? Apenas para silenciar as ruas

O tema da Reforma Política não é novo, porém ganhou força após os protestos de Junho de 2013. O tema sempre vinha e voltava no debate público, mas nunca voltou com tanta força quanto no auge dos protestos. Dilma foi a público anunciar suas propostas para superar o que ela achava ser a crise (e que não tinha relação alguma com o que se pedia nas ruas): Reforma Política.

Imediatamente, após o anúncio feito por Dilma, eu já havia alertado que não passava de uma jogada desesperada e que teria consequências no longo prazo, especialmente pela insistência do PT, posterior, em um modelo grotesco de " constituinte ".

O PT imediatamente repassou a tarefa de arregimentar os crentes e movimentos cooptados (como UNE, CUT, MST e o eterno pau-pra-toda-obra PC do B, vulgo PSeudoB, dentre outros) para levar adiante uma consulta e promover uma constituinte "exclusiva". Em linhas gerais, a votação foi um fracasso e ninguém realmente se importou muito, mas a ideia ficou, como uma bola pingando na área esperando que alguém chutasse.

O PSOL infantilmente até tentou aproveitar o momento e adotar a bandeira, mas, no fim, foi Eduardo Cunha quem deu forma à tragédia.

Não vou me alongar na estupidez de pedir por reforma política ou mais ainda, de pedir uma constituinte, estando diante de um congresso conservador e com viés de piora, enquanto temos no poder um governo fraco e estelionatário - a questão, no fim das contas, é a de que o abacaxi adentrou a sala, ou o Congresso, e ameaça se tornar extremamente indigesto para o país. Não acredito que Cunha e sua gangue irão simplesmente deixar pra lá o assunto só porque sofreram uma derrota.

Falemos de responsabilidades, pois. É em grande parte do PT e de quem foi na onda. Ao invés de respostas efetivas aos protestos de Junho, tivemos apenas repressão e propostas pífias ou, no caso em tela, perigosas. Nada, porém, que efetivamente respondesse à voz das ruas, mas apenas algo que grita mais alto em sentido contrário.

A intenção de Dilma, PT e movimentos cooptados – também com ajuda do PSOL, que parece ser incapaz de se descolar do PT e se mostrar uma oposição de verdade – era a de jogar uma ideia, fingir que trabalhava nela, para depois jogar debaixo do tapete e continuar a mandar e desmandar, mas tirando proveito da propaganda que toda a mobilização pela Reforma Política causou e poderia vir a causar.



Veio a eleição e tudo foi esquecido. Ou quase.

Petistas entusiasmados com a vitória e com uma campanha francamente mentirosa falavam em resgatar bandeiras de esquerda, mas tudo que vimos até o momento foi o resgate das piores bandeiras do governo FHC, com direito a uma possível implosão do sistema político, que sem dúvida é ruim, mas pode piorar.

O tema da Reforma Política, enfim, voltou graças à tentativa do PT de calar a boca das ruas sem, no entanto, ter real intenção de impor a agenda – oras, se se mantinha no poder com o modelo atual, por que mudar? Melhor apenas usar o tema como propaganda, como tantos outros que nunca saíram do papel e são mesmo propositadamente deixados de lado, como reforma da mídia ou taxação de grandes fortunas. Acabou caindo no colo daquele que pertence ao mesmo partido do vice-presidente (Michel Temer), pese a massa petista o pintar como inimigo.

O PT escolheu o PMDB como aliado. Não existe isso de "não tinha opção", o PT já foi eleito quatro vezes para governar e escolheu o PMDB como aliado preferencial. Ninguém colocou uma arma na cabeça de Lula ou Dilma, nem para se aliar ao PMDB e nem para sair em fotos com Maluf, por exemplo. Escolhas foram feitas, assumam. O partido é aliado feliz do PMDB no Rio de Janeiro, estado de Cunha. Não há espaços para reclamação agora e nem para o consagrado "mimimi".

O modelo de Reforma Política proposto pelo PMDB e por Cunha é o pior dos mundos, com o famigerado "distritão", e conta com o apoio inclusive de Michel Temer, ou seja, conta com apoio no mais alto escalão governamental. Não é caso isolado, não é mera "birra" de Cunha, é uma política apoiada pelo principal aliado do PT.

Mas voltando ao tema, o fato é que o PMDB e especialmente Cunha adotaram o tema da Reforma Política e levaram adiante o projeto (o deles, claro) diante de um PT vendido ou ao menos se fingindo incapaz de resistir.

E digo que se finge porque teve força para impor a aprovação de MPs (664 e 665) ao Congresso que representa o maior retrocesso nos direitos trabalhistas na história recente do país, algo que sequer FHC foi capaz de conseguir (porque o PT, pasme, bloqueava enquanto era oposição). O PT foi capaz de impor pautas regressivas, privatizações, corte de direitos, mas, na hora de pautas progressistas e de esquerda, o congresso milagrosamente se torna um empecilho – ou, na verdade, a desculpa usada por um partido de direita para manter parte de uma militância que se pensa de esquerda na coleira.

Ou seja, o PT, quando quer, consegue impor suas pautas; pena que em geral estas sejam contrárias àquilo que pregavam antes das eleições ou mesmo durante toda sua história. Pautas de direita, retrógradas, contrárias aos interesses do povo e a seus direitos.

Resumindo, o PT trouxe o tema da Reforma Política como farsa, apenas para silenciar as ruas em 2013. Agora, o feitiço virou contra o feiticeiro.

Eis que, em um momento de estelionato eleitoral e de aparente fraqueza do governo, acuado, vitimado por protestos gigantescos e sem capacidade de reagir – além de envolvido em inúmeros escândalos de corrupção – ou sequer pensar em alternativas, seu principal parceiro político resolve retomar sua agenda e transformá-la no pior dos mundos.

Agora, fingindo correr atrás do prejuízo, os petistas tentam tirar o corpo fora: “a culpa é do PMDB”. “É do Cunha”. Oras, não cola. A culpa é de quem usou um tema tão importante apenas como marketing e agora finge ser atropelado pelo partido com quem governa o país em aliança, e com bilhões de reais desviados da Petrobrás como garantia.

Não nego que o modelo proposto por Cunha e PMDB, o "distritão", não seja do agrado de líderes do PT, mas não se trata deste debate. Não importa se o PT gosta ou não do modelo e sim que foi o responsável por permitir que chegássemos a este ponto. Não apenas por permitir, mas por ser o responsável por trazer o tema à tona sem qualquer compromisso em levar adiante o debate buscando dialogar com a sociedade, em busca de um modelo que efetivamente promovesse maior participação e representação democrática.

Em poucos meses após a reeleição de Dilma, tivemos os maiores cortes de direitos da história recente do país e a aprovação de um sistema político lamentável e prejudicial à democracia e aos partidos políticos. E os responsáveis são os mesmos: PT, PMDB, PSDB e seus aliados menores. PSDB, que liberou bancada, PMDB, que propôs a aberração e PT, que finge ser contra, mas cujo governo liberou a bancada. Ou seja...

Quem gritou durante as eleições por "reforma política" que assuma a responsabilidade por uma piora assustadora no sistema político brasileiro. Parabéns aos envolvidos, conseguiram tornar o ruim ainda pior, fingindo responder às ruas, mas na verdade lhes dando um tapa (ou pior).



Por sorte escapamos. Dessa vez. O que ainda nos espera?

Leia também:

Reforma Política proposta pelo atual Congresso eliminará de vez a voz da sociedade

Raphael Tsavkko Garcia, jornalista, doutorando em Direitos Humanos pela Universidad de Deusto (Bilbao) e mestre em Comunicação.



Nós votamos, eles elegem

Haverá eleição presidencial nos EUA em 2016. Como no Brasil, lá também o povo vota, mas quem elege é o dinheiro.

Os pré-candidatos estadunidenses já paparicam os grandes doadores de campanhas: Sheldon Adelson, dono de cassinos, nos últimos 12 anos doou US$ 120 milhões aos republicanos; George Soros, especulador, US$ 44 milhões aos democratas. Os irmãos David e Charles Koch, do ramo petroquímico, se dispõem a arrecadar US$ 900 milhões para os republicanos; e tantos outros bilionários se mobilizam.

Na corrida ao Planalto, em 2014, nossos candidatos arrecadaram, juntos, R$ 586 milhões. A campanha de Dilma abocanhou R$ 318 milhões, mais da metade do total. Zerou todas as despesas e ainda sobraram R$ 169 mil. Aécio arrecadou R$ 201 milhões, e ficou dependurado na dívida de R$ 15 milhões.

Até 1997, no Brasil era proibido empresas financiarem campanhas eleitorais. O PSDB quebrou a boa norma e fez aprovar a lei eleitoral nº 9.504, que permite financiar candidatos sem que o dinheiro passe pelos partidos.

Só um imbecil pensa que se trata de “doação”. É, de fato, investimento. Empresas e bancos “emprestam” grana à espera de retorno assegurado pelo desempenho político do eleito. Não há papel assinado, exceto quando a doação é ao partido.

Se o candidato perde, o investidor contabiliza na folha de “perdas e danos”. E nada impede de o candidato embolsar parte do recurso recebido. Se é eleito, sabe que deverá ser leal a seus “investidores”, caso contrário será castigado nas próximas eleições e ficará a pão e água...

Os maiores investidores procuram formar bancadas, como a do BBB (bola, bala e Bíblia), assim como há bancadas do agronegócio, da bebida alcoólica, dos frigoríficos etc.

São 39 os países que, hoje, proíbem empresas de financiarem eleições, entre eles Portugal, França, Canadá, México, Colômbia e Peru.

Além da grana “por fora” de empresas e bancos, no Brasil há ainda a grana do Fundo Partidário. Até abril deste ano era de R$ 290 milhões. Dilma, apesar do ajuste fiscal, triplicou-o. Agora é de R$ 868 milhões. Também ela investe na base aliada...

Em época de eleições, você já escutou “Interrompemos a nossa programação para o programa eleitoral gratuito”. Mentira. Não é gratuito. O valor do tempo cedido por rádios e TVs à campanha eleitoral é abatido no imposto de renda das emissoras. Em 2014, elas ganharam R$ 840 milhões de isenções fiscais.

E o mais intrigante: a União é, constitucionalmente, a proprietária do sistema radio-televisivo brasileiro. E, no entanto, paga para utilizá-lo em campanhas de interesse público.

O STF decidiu por 6 a 1, em maio de 2014, proibir doação de empresas a campanhas eleitorais. Porém, o juiz Gilmar Mendes, contrário à decisão, apelou para o recurso de “pedido de vistas” e enfiou o processo debaixo do braço. E não há lei que o apresse. Na verdade, ele queria ganhar tempo para transferir a decisão para o Congresso. Acreditava que deputados e senadores, capitaneados por Eduardo Cunha, vetariam a proibição.

Resta à sociedade civil pressionar para que os nossos políticos tenham vergonha na cara e decência no bolso. E, na próxima eleição, votar com mais consciência.

Frei Betto é escritor, autor do romance “Minas do Ouro” (Rocco), entre outros livros. Página e Twitter do autor: http://www.freibetto.org/ twitter:@freibetto



Quando a farsa vira tragédia

Foi dito que a história se repete; ao que se emendou: primeiro como tragédia, depois como farsa. Mas o bizarro espetáculo que vem sendo encenado em terras brasileiras, parece a farsa, da farsa, da farsa.

Também se falou que as sociedades modernas só existem em constantes e radicais transformações: são revolucionárias por natureza. Ao que se acrescentou: algumas dessas sociedades se transformam por meio de acordos e rearranjos vindos “do alto”, as chamadas “revoluções passivas”. Se a história brasileira nos últimos séculos foi marcada por muitas e importantes lutas sociais – contra a invasão portuguesa, contra a escravidão, contra a exploração assalariada, contra ditaduras, entre outras -, episódios em que os debaixo afrontaram as tantas opressões que sofriam, é evidente que a coragem, a dedicação e a organização dos subalternos não foi suficiente para virar esse jogo. E isso mesmo se consideramos que boa parte dessa história de luta foi violentamente apagada por uma elite sanguinária, de uma ambição sem qualquer limite, que sempre morreu de medo dos debaixo, e massacrou quem ousou se opor aos seus desmandos.

Uma das coisas que distinguem a situação atual é que a barbárie e a ofensiva promovida pelos endinheirados não é uma resposta a qualquer confronto ou ameaça popular . E ela também não implica em nenhum tipo de sacrifício por parte das elites, na linha do “vão-se os anéis, ficam os dedos” . Ela segue outra lógica, que já opera há tempos: à falta de uma oposição real, à falta de forças sociais que coloquem freios à sua sede por dinheiro, a palavra de ordem é: “ficam os anéis, e passem todo o restante do ouro pra cá: agora!”. Além do velho mandamento: “depois de mim, o dilúvio”, ou seja, “para mim tudo, e que tudo o mais se exploda”.

Essa situação óbvia é escondida por uma grossa cortina de fumaça: a grande mídia zomba da nossa inteligência, martelando besteiras sem parar; de modo geral, o resumo da ópera é que a origem de todos os males da humanidade é a corrupção, entendida como um problema moral. A corrupção é um sintoma, é a expressão de uma doença terrível e muito resistente, que precisa ser entendida para ser combatida (afinal, não se vence a gripe atacando o espirro, mas sim o vírus). Essa doença é a própria vida escravizada pelo imperativo do lucro; em um mundo em que “Deus é uma nota de 100”, o dinheiro corrompe, e a corrupção, sob diversas formas, prevalece, sob qualquer governo, de qualquer partido.

Assim, por detrás da tal cortina de fumaça vemos algo muito simples: o que está em jogo são meros acertos entre os ganhadores de sempre. Afinal, além de injustiças e desigualdades, uma sociedade guiada pela ganância desenfrada necessariamente gera crises, riscos e perdas. Depois de terem lucrado muito, em tempos de relativa bonança e de muitas fraudes, agora se trata de empurrar a fatura dessa conta para os perdedores de sempre – a população trabalhadora -, e de criar caminhos para dar continuidade ao seu enriquecimento. E um dos elementos mais importantes dessa equação é saber quem vai ter mais ou menos acesso aos cofres do Estado. Basicamente é sobre isso que se trata toda a polêmica pró e contra-Dilma.

As recentes marchas e as manifestações de rua, que talvez pudessem ser a expressão de um processo de reflexão e de organização, revelam precisamente o oposto. Em ambos os protestos, muitas bandeiras nacionais, manifestantes cantando o hino e palavras de ordem nacionalistas; “militantes” pagos; “dirigentes políticos” acompanhados por muitos seguranças particulares; agressões e demonstração de ódio contra opositores; muitas palavras de ordem comuns a ambos os “eventos” (“abaixo a corrupção”; “reforma política” etc.); e, quando os manifestantes eram questionados sobre os motivos dos protestos e sobre o que queriam ou esperavam delas, ficava evidente que não havia nada por detrás dos “slogans”, além de muita confusão mental (confiram o relato de um companheiro aqui ; e vejam os vídeos aqui e aqui ).

É certo que causa grande impacto a grita por um novo golpe militar, o anacrônico coro de “vai pra Cuba” ou “chupa comunista”, que são expressões conscientes ou inconscientes do mais puro ódio de classes. Entretanto, a defesa acrítica do governo e a afirmação militante da noção do “menos pior”, que aceita um caminho que evidentemente têm alimentado o “pior do pior”, revelam uma matriz comum – fanática – a ambos os campos (a)políticos.

Em meio a tanto barulho, não se diz palavra sobre as questões que realmente importam. Que tempos terríveis, em que parece não existir história, em que parecemos presos num eterno presente, pleno de desgraças. Se é que se pode ainda perguntar pelo sentido da vida, este parece se resumir a ter mais e a parecer melhor que os demais: é só competição, ostentação, consumismo. Ficamos insensíveis em relação ao sofrimento e as alegrias dos demais; até a nossa própria vida a gente vê como uma novela, com distanciamento e com certa indiferença. Não é à toa que existe uma epidemia de doenças como depressão, síndrome do pânico, esquizofrenia, e tantas outras, que há pouco tempo achávamos que era coisa de rico. Além disso, torna-se normal nos dias de hoje vermos evangélicos realizando exercícios militares e atacando terreiros (de umbanda e candomblé); multidões escravas de um cachimbo; policiais matando, torturando e encarcerando negros e pobres aos montes, e sendo aplaudidos por isso; grupos extremistas assassinando homossexuais; milhões utilizando as “redes sociais” para destilar o ódio e os preconceitos mais bárbaros; milhares de mulheres sendo agredidas, violentadas e mortas…

Da mesma forma como “governo” e “oposição” (dois lados da mesma moeda) estão comprometidos até o último fio de cabelo com a lógica opressiva, hierárquica, alienante e exploradora do capital, forças ditas de “esquerda” e de “direita” convergem na marcha fascista em curso, expressão daquela lógica. Mesmo alguns movimentos populares que se afirmam “autônomos” e “revolucionários”, imersos até o pescoço nas barganhas e sufocados pelo seu próprio oportunismo e autoritarismo, jogam lenham na fogueira fascista; longe de estimularem a autonomia de seus membros, de abrir espaços para a reflexão e para a compreensão da conjuntura, eles buscam reforçar as falsas polarizações, rebaixar as discussões ao nível do “FLA X FLU”, e fortalecer seu caráter autoritário e manipulador.

Se o pensamento está tão fora de moda, e se a “comunicação” é propriedade de meia dúzia de grandes empresas, não pode existir liberdade de expressão; se esquerda e direita se igualam numa massa raivosa, desnorteada, e manipulável, e se os partidos de direita e de esquerda reduziram seu horizonte ao favorecimento de si próprios e dos grandes grupos econômicos, não pode existir liberdade política; se estamos todos infantilizados, incapazes de tomar decisões, não pode existir nenhum livre-arbítrio. Ainda assim, vemos milhões clamando por uma nova ditadura civil-militar. De fato, existe o perigo dos manipuladores errarem nos seus cálculos, e acabarem libertando um monstro que eles alimentam, mas que não têm poder para controlar, e que pode se voltar contra seus próprios interesses. Uma coisa é certa: enquanto ficarmos reféns dos erros e acertos de cálculos das elites, continuaremos de mal a pior. É evidente que essa escalada fascista em curso por todo o mundo só poderá ser refreada com a ação popular consciente e articulada, embasada em experiências práticas de planejamento, tomada de decisão e de controle sobre as mais diversas esferas de nossas vidas, nas mais diversas escalas. Os fascistas de plantão e de profissão de fé continuarão suas marchas rumo ao abismo. Será que iremos conseguir puxar o freio, e desbravar outros caminhos?



Lula, por que não te calas?!

A desarticulação total do governo e do PT os tornou quase cartas fora do baralho político. Dilma Rousseff defende o programa do capital, mas não é mais a delegada do capital. Agride sem vacilar os segmentos populares e seus representantes, única força que pode garantir a presidência. Os petistas no governo já não representam o partido e o partido já não expressa, mesmo em viés social-liberal, qualquer facção significativa dos assalariados, dos trabalhadores, das classes médias. Uma outra fantasmagoria do passado, Lula da Silva sai à luta e não cala a boca, como um papagaio rouco. Diz que apoia Dilma Rousseff e não pára de criticá-la. Alfineta sem cessar Aloizio Mercadante, que sonha com o futuro trono presidencial que Lula da Silva crê seu.

Em iluminação singular, o ex-presidente exige que a presidenta e o PT se aproximem das bases e da população... Para defender o tarifaço e o ajuste conservador. Simplesmente pede que convença os condenados a colocarem a corda no pescoço, sem espernear! Propaga a necessidade de retorno ao espírito do PT dos anos 1980, esquecendo, porém, que ele e seus acólitos procederam, de corpo presente, a liquidação do petismo de então, classista, anticapitalista e pró-socialista.

Vendo realizados seus mais ambiciosos devaneios, através de seus braços políticos tradicionais e provisórios, o grande capital levantou-se propondo o afastamento imediato de Dilma Rousseff. Defende, agora, um programa muito mais amplo e ambicioso do que no passado pleito, já que não se realiza a traumática troca de um presidente com programa conservador, no início de mandato, por outro alguns dedos mais conservador.

As manifestações de 15 de março expressaram a adesão maciça ao defenestramento imediato de Dilma Rousseff pelas classes proprietárias, sobretudo altas e menos altas. Estiveram presentes importantes segmentos médios e, residualmente, trabalhadores e assalariados, em geral ainda não conquistados para a derrubada da presidenta. A pífia manifestação petista do dia 13 registrou o monumental desequilíbrio de forças e uma indiscutível verdade: a imensa maioria das classes populares não pôs ainda o pé na rua.



Um Brasil para o Tea Party

A grande burguesia e o imperialismo querem agora tudo e muito mais do prometido por Aécio Neves e o PSDB. Sonham, sobretudo, com reformatação institucional, política e ideológica do país, no estilo de 1964, sem cederem o poder aos oficiais superiores. Sabem que eles, como os políticos tradicionais, após agarrarem a teta, esperneiam para largá-la. Em verdade, a reorganização institucional do país já se iniciou através de projetos de lei sobre a maioridade penal; sobre a lei antiterrorismo; com a proposta de autonomia do Banco Central; com a discussão de reforma eleitoral etc.

Os parlamentares trabalham, agora, aprovando leis como jamais o fizeram! Tudo pensado pelos representantes diretos da burguesia liberal e sob o bafo do moralismo piegas, do nacionalismo fascistizante, do fundamentalismo religioso. O principal chefe de orquesta parlamentar é Eduardo Cunha, presidente da Câmara de Deputados, evangélico, homofóbico, misógino, investigado no passado e no presente por corrupção. Imagem cintilante da grandeza republicana das forças do neoconservadorismo brasileiro triunfante.

Apoiado no movimento de indignação da população causado pelo escândalo da Petrobrás, pelo anojamento para com o impudico estelionato eleitoral petista e pelas medidas antipopulares impostas e em imposição, o grande capital tem a intenção de enviar o PT para as calendas da história. Facções direitistas da Justiça em atividade sectária ininterrupta lançam a idéia de caçar o registro eleitoral de partidos - desnecessário dizer qual - com militantes e dirigentes envolvidos na corrupção. Ao igual do imposto aos partidos comunistas pelo imperialismo em países do Leste Europeu, sob outras justificativas, após a restauração capitalista. O ataque busca resultados mais amplos do que a liquidação, como grande partido nacional, da fantasmasgoria petista, que será certamente realizada nas próximas eleições.

Através do PT, ambicionam esculhambar política e ideologicamente a esquerda que, no frigir dos ovos, a imensa maioria da população ainda identifica com o PT, praticamente desconhecendo PSTU, PSOL, PCB. Ao chafurdar na lama da corrupção e do colaboracionismo com o capital, o petismo prestou um último e valioso serviço aos seus antigos patrões, que hoje o demitem afirmando justa-causa. Enlameou princípios, idéias, memórias, lutas que há muito traíra pelas trinta moedas da adesão ao capital.



Gritam o impeachement , mas querem a renúncia

As condições gerais para a deposição da presidenta são as mais propícias, ainda que nada possa ser dado por certo, ao igual que na guerra e no amor. Os partidos conservadores unificaram-se em torno da proposta, com a ruptura de fato do PMDB com o governo e sua convergência com o PSDB, pondo as bases para a nova aliança governamental. A defecção do núcleo duro do PMDB permitiu imobilizar o governo, impossibilitando-o de cumprir a promessa de rápida imposição do ajuste conservador.

Para fazê-lo, terá que cortar no osso seu orçamento! Financiada pelo capital internacional e usando métodos aprimorados desde a Revolução de Veludo , na Europa do Leste, em 1989, a direita desce multitudinariamente às ruas para exigir a acusação constitucional de Dilma Rousseff, sem se referir à entrega do governo ao plastificado Michel Temer, já em plena campanha presidencial. Os gritos pelo impeachment apenas disfarçam a mobilização de fato pela renúncia da presidenta.

São quatro as razões que impedem que o impeachement seja a política prioritária da direita unificada. Primeiro, não há justificativa legal para a acusação já que, constitucionalmente, para tal, vale apenas o presente mandato. Pouco importante o que ela fez - se é que fez - no anterior. Uma tal proposta dificilmente seria referendada pelo Supremo Tribunal Federal. Segundo, não é certo que o golpismo constitucional consiga os votos suficientes no Congresso. Terceiro, com a deposição, Michel Temer e o novo governo seriam tratados como apestados por parcela considerável da opinião pública e das instituições políticas mundiais. O ato de violência poderia facilitar a articulação de reação do movimento social, mesmo posterior. A última e grande razão é que as burguesias nacional e internacional não sabem qual a eventual resposta popular ao iniciar a contagem final com Dilma Rousseff de costas para o paredão. E se a população entender que é ela - e não as tristes figuras da presidenta e do PT - a visada pelo bote conservador? Lembram-se certamente de Getúlio que, ao cair, desferiu um tiro no peito, acertando igualmente a reação.



A solução de todos os male s

A solução para todos esses males é a renúncia. Com ela, sem gritos e sem ranger de dentes, Michel Temer assumiria a presidência, formaria governo de salvação nacional com o PSDB, iniciaria um reino político de longos anos, garantido por nova lei eleitoral e nova institucionalidade. Para tal, é necessário criar as condições que obriguem a presidenta à renúncia, através, sobretudo, da desmoralização, da humilhação, do achincalhamento e do esculacho de Dilma Rousseff e de seu governo.

Os principais instrumentos dessa operação são as manifestações multitudinárias e o confisco do poder pelo Congresso Nacional, transformando o governo de Dilma em mentirinha. Um processo já em marcha acelerada. A convergência entre Eduardo Cunha e Renan Calheiros permitiu o embretamento parlamentar do governo, submetido incessantemente a derrotas graves e humilhantes. O novo passo é o confisco de poderes presidenciais, proposto ou já em curso - delimitação do número de ministros; nomeação dos juízes para os tribunais superiores; orçamento impositivo; Banco Central autônomo etc.

As iniciativas parlamentares assentam golpes duríssimos, sobretudo, porque, em sedução desbragada ao grande capital, Dilma Rousseff aceita sem responder todas as agressões e provocações, procurando acalmar a fome leonina dos agressores com concessões incessantes e desmedidas. A população assistiu perplexa a literal deposição pelo Congresso, praticamente em direta, de Cid Gomes, ministro da Educação. O todo poderoso ministro da Fazenda, Joaquim Levy, gozando de autonomia quase plena, desejada por Dilma Rousseff, para manter diferenciação com o governo que integra, trata com desrespeitoso desaire a chefe do executivo.

O núcleo conservador da Justiça faz o que quer – há pouco, faltou um dedo para extraditar, na calada da ilegalidade e da noite, Cesare Battisti para a França. Consolida-se a imagem de presidenta acuada e acovardada, verdadeiro carneirinho da reação. Algo difícil de carregar, para quem reivindica o “coração valente” que possuiu no passado já distante. Tudo, mas tudo mesmo, para não romper com o capital e governar para e com o apoio da população brasileira. Nem que fosse um pouquinho!



Agora ou nunca

Para a concretização do quadro conspirativo, falta apenas que aos, sobretudo brancos e chiques das mobilizações conservadoras, se associem grande número de pardos, negros, pobres e trabalhadores galvanizados pela grande mídia e estressados pelos crescentes desemprego, inflação, tarifaços que a senhora Dilma Rousseff distribui insensível, com o apoio de Lula da Silva e sem qualquer oposição visível e real de nenhum setor petista. A manifestação do dia 12 de abril é, portanto, de certo modo, decisiva na orientação da direita política. Também a contrarrevolução tem seu timing . Cremos que, por razões fortes, a derrubada de Dilma Rousseff e expurgo do PT do governo deva se dar, necessariamente, em forma rápida, nos próximos meses.

Tudo que não avança, retrocede. A mobilização nas ruas pode crescer, com o aprofundar-se da crise, mas refluirá, certamente, se não obtiver, muito logo, suas conquistas. O capital exige ajuste rápido e radical, não podendo manter-se por longo prazo o bloqueio às iniciativas liberal-conservadoras do governo. A exacerbação da situação de crise e de insegurança geral pela grande mídia, no estilo o “Brasil está acabando”, não pode ser mantida por tempo indefinido, pois também prejudica os negócios.

Finalmente, Eduardo Cunha, Renan Calheiros e os deputados, senadores, governadores et caterva indiciados, e por serem indiciados nas investigações judiciárias, necessitam um novo governo para restringir exclusivamente aos petistas e assemelhados o braço da justiça e o furor da população. Temem estar com tudo, agora, e terminarem, amanhã, no camburão da Polícia Federal, se não agirem rápido.



O que está em jogo?

Não assistimos um segundo turno eleitoral, onde Dilma Rousseff seria derrotada e substituída pelo cavaleiro da esperança de turno da burguesia, Aécio Neves, como a grande mídia deixa a enorme parte da população crer. Não se trata, sobretudo, de uma luta entre PT e o PSDB, entre a esquerda e a direita parlamentares. Dilma Rousseff se esforça para aplicar praticamente todo o programa de Aécio Neves. O petismo já é carta fora do baralho, destinado no melhor dos casos a seguir como partido residual, incapaz de disputar a presidência da República, por longos e longos anos. Todas as tendências apontam para uma vitória conservadora estrondosa em 2018.

Atualmente, almeja-se a instalação de um novo polo de poder que refunde as instituições fundamentais do país no grau mais conservador que for possível. Não se trata, sequer, do privatismo exacerbado dos tempos dos dois Fernandos. Logicamente, no projeto liberal encontra-se a privatização total das jóias da Coroa, com destaque para a Petrobrás, Caixa Econômica Federal, BNDES. E um enorme recuo do Estado em favor do privado, com ênfase na educação superior, secundária e primária, e na saúde. A irrigação com as verbas públicas das empresas confessionais garantirá amplo apoio ao novo poder pelo fundamentalismo religioso de todos os pelos. Será liquidada a laicidade do Estado, já ferida por Lula da Silva e Dilma Rousseff por oportunismo eleitoral. A desregulamentação do trabalho assalariado será estendida até onde a corda aguentar.

Deseja-se reforma eleitoral, na medida das necessidades do conservadorismo, com teto mínimo nacional de sufrágios, para a representação parlamentar e o financiamento estatal e, talvez, até mesmo, para manter-se o registro eleitoral. Uma tal reforma fará as legendas de aluguel se acomodarem nos grandes partidos conservadores e as de esquerda que se reivindicam do marxismo desaparecerem. O que é praticado na França há décadas, sob falsas aparências democráticas. A criminalização do MST e de outras organizações dos pobres da cidade e do campo será facilitada com endurecimento do código criminal, que conta com enorme apoio entre a população. O conservadorismo extremado deseja tudo isso e muito mais. É difícil saber até onde chegará, e em que ritmo, caso abiscoite o governo, agora, ou, no próximo pleito, após, nesse caso, sangrar o governo até sua exaustão final.



Meu reino por uma Central Sindical

A situação dramática atual é expressão de debilidade política e organizacional estrutural dos trabalhadores e assalariados no Brasil, indiscutivelmente o grande ausente na atual conjuntura. É simplismo extremado responsabilizar exclusivamente o Partido dos Trabalhadores pela passividade e desmobilização política do mundo do trabalho. Em verdade, foi o enorme refluxo do movimento social, sobretudo a partir dos anos 1990, que facilitou a guinada liberal-conservadora do PT que, por sua vez, organizou e alimentou conscientemente a desorganização popular.

No mesmo caso podemos colocar o movimento sindical - com destaque para a burocratização e colaboracionismo da CUT -, fatiado por todas as organizações políticas que puderam, por razões político-eleitorais, por motivos materiais, por princípios sectários e, não raro, por tudo isso embolado. A terrível dispersão sindical brasileira e um sindicalismo de superestrutura produziram sequelas terríves. A direita não se moveria com tamanha desenvoltura se contássemos com uma poderosa central sindical unitária, mesmo não revolucionária – e já houve, meu deus, central sindical revolucionária?

Da debilidade do mundo do trabalho, fenômeno mundial que alcança verdadeiro paroxismo no Brasil, participam as organizações de esquerda que se reivindicam do marxismo, com maior ou menor convicção. Mesmo as maiorzinhas, são quase minúsculas, para a dimensão do Brasil e para as tarefas com que hoje se deparam. Em graus diversos, igualmente cooptadas e integradas ao Estado, através das prebendas parlamentares, das verbas partidárias, das sinecuras sindicais, não possuem - e algumas delas, paradoxalmente, parecem que jamais se preocuparam em conquistar - uma real inserção social e territorial, por além da representação superestrutural sindical e eleitoral. Dificilmente colocam, todas juntas, cinco mil militantes nas ruas de uma das nossas grandes metrópoles.



O que fazer?

A positiva e desejável unificação das organizações de esquerda não modificaria o cenário atual. É necessário muito mais. E ela dificilmente se dará, para além das palavras, como ocorreu já no passado. Aparatos sobretudo ideológicos, sem organizarem politicamente segmentos trabalhadores significativos que os guiem na luta política, respondem às grandes e pequenas crises, muitas delas, em forma oportunista, dogmática e sectária. Não devemos nos espantar se alguma tentar subir no trenzinho da derrubada de Dilma Rousseff, caso as mobilizações assumam um perfil mais popular .

Agora e nos próximos momentos, se frutificar a ofensiva direitista, palavras de ordem e políticas gerais do tipo “Fora Dilma, Fora Aécio” ou “Fora todos!” são literalmente criminais. Pelas simples razão que não está em pauta a derrubada do Aécio ou dos politiqueiros, mas de governo constituído, assaltado pela direita conservadora, com o objetivo de ferir o mundo do trabalho, seu programa e suas organizações. A comparação é forçada, mas na URSS, com a queda do stalinismo nefando, perderam-se conquistas históricas do mundo do trabalho, no mais, drama jamais vivido pela história.



Como jamais, a Esfinge nos diz: “decifra-me ou te devoro”.

A charada é complexa, apesar de sua aparente simplicidade. Como combater o governo liberal-conservador de Dilma Rousseff, sem se juntar ao movimento golpista? Como defender as instituições de ataque conservador, à espera de tempos melhores, sem defender o governo autocida de Dilma Rousseff?



Stálin mora na Cantareira

Cantareira é um abençoado aglomerado de água próximo a São Paulo que abastece 6 milhões de moradores. Recebe o nome da prazerosa serra em que se situa, a Serra da Cantareira. Para os outros 6 milhões a água vem de reservatórios das periferias desta terceira maior metrópole do mundo em número de habitantes.

A bela Cantareira secou. Está com 5% de sua capacidade. Os reservatórios que atendem aos outros 6 milhões de habitantes da metrópole, fora Cantareira, igualmente estão com seus volumes reduzidíssimos. A situação é idêntica em todo o Estado de São Paulo, com seus reservatórios minguando.

Vejam no mapa. Entre os 26 Estados em que se divide o Brasil, o de São Paulo é um dos vários que têm o tamanho de uma Espanha, uma Alemanha, uma Itália. Como é grande o Brasil!

E o que Stalin tem a ver com isso? [Já escrevi cartas aos principais jornais do Brasil mas fere seus interesses publicá-las.] Vejamos. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, está há 16 anos no poder e não se preocupou nesse tempo todo em realizar uma mísera obra  para a gigante São Paulo se prevenir da mais do que prevista falta de água.

Agora é Stalin. Eis a carta que enviei a órgãos de comunicação e eles não publicam, com cópia para o governador Alckmin e o prefeito Haddad:

" Vou dizer até morrer. Falta de chuvas, falta de água, principalmente falta de obras do governo para prevenir a situação. De quem a culpa? Do povo! Pois lá vêm os governantes, leia-se Alckmin e Haddad, punindo a população, impondo multas, criminalizando o uso da água, como se fosse maconha.

Tivessem ambos um grão de mostarda de educação democrática em seu sangue confiariam no ímpeto honesto do bom povo em economizar água e não ressuscitariam o modo stalinista de patrulhar os cidadãos, como nos processos de Moscou, onde uns apontam o dedo para os outros, pais denunciam os filhos, vizinhos denunciam vizinhos.

A pergunta que não cala: a quanto chegaria a multa aos dois, Alckmin e Haddad, pelo desperdício por vazamento nas deterioradas tubulações das ruas, de 40% da água produzida em São Paulo?

Prova da atual atmosfera stalinista da água: estava eu jogando água de chuva na entrada de carro da minha calçada de 1metro por 4 metros para eliminar o cheiro de mijo de cachorro que entra pela minha janela do quarto de dormir e eis que um cidadão desconhecido me abordou agressivamente ameaçando denunciar-me à polícia. O limite do meu gasto nas contas de água em minha residência com jardim, 3 quartos, sala, copa, cozinha,  banheiro, 4 moradores e um enorme terreno é de 25 reais. Chegou à porta da minha casa o modo Alckimista, ops, stalinista, desencadeado para patrulhar os cidadãos

Enquanto isso, nessa mesma São Paulo, por exemplo, uma empregada doméstica que está a lavar a calçada inocentemente porque desprovida de informações sobre os acontecimentos que varrem o mundo, corre o risco  de linchamento por qualquer maluco desastrado, ao modo de Stalin, em um momento mais aflitivo da crise.

Embora sejam as indústrias junto com a pecuária e a agricultura as responsáveis por 94 por cento do consumo de água, e isso no mundo inteiro, Alckmin, conhecido por sua ideologia de extrema direita, volta-se contra os fracos, isto é, multa os lares que usam água minimamente para lavar roupa, louça, tomar banho.

Minha definição de fascismo: o forte bater no fraco. Sou repetitivo: Já no quarto mandato sem nunca ter se preocupado com o antigo prenúncio da crise hídrica em São Paulo, Alckmin faz o mais fácil disponível, criminaliza o consumo de água domiciliar como se fosse maconha. Ele e Haddad conversaram desde o início do agravamento da crise decidindo por multas e ameaças contra quem se excede no consumo.

A parte de Haddad no acordo é cumprida com a autoria do projeto 529/2014, já aprovado em primeira votação pela câmara. O projeto prevê multa de mil reais para quem usar água tratada da rede da Sabesp para lavar calçada ou carro. No plenário, os vereadores declararam constrangimento por aprovarem a multa e pretendem amenizar o texto durante a segunda discussão.

A par do desgoverno tipo Cantareira, transita no Palácio dos Bandeirantes o desgoverno tipo Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo e AES Eletropaulo, empresas que respondem ao governo Alckmin.

Encaminhei carta ao governador há algum tempo denunciando cobranças indevidas de serviços aos consumidores e a tirania dos medidores de água da Sabesp e da Eletropaulo. Sugeri, em vão, que o governador envie jornalistas de sua confiança para fazerem um levantamento, nos Procons da vida, das principais queixas registradas pelos cidadãos contra essas duas empresas.

Recentemente, serviços da Eletropaulo tornaram as ruas de São Paulo num sombrio emaranhado de fios elétricos dependurados perigosamente em postes e espalhados pelas calçadas. Às minhas reclamações contra o desgoverno na Sabesp e na Eletropaulo, o Palácio respondeu que a questão foi encaminhada à autoridade competente. Me engana que eu gosto.

Meu mestre de Direito, Gofredo da Silva Telles, dizia que Estado deve ser escrito com maiúscula. O Estado com maiúscula é o carrasco do povo, digo eu.  Tenho sido o cuidador de algumas de suas vítimas. Sou frequentador dos bancos de espera do Procon. Assim, testemunhei, entre outros, um caso da Sabesp em que foram cobrados 3.500 reais de serviço por vazamento na rua, em que o morador não tem culpa, e outro em que o medidor registrou consumo de água que encheria duas piscinas, numa residência que eu conheço há 40 anos, onde vive apenas uma mulher idosa, e lá nunca houve vazamento algum Entre meus talentos, sou também encanador, o chamado bombeiro.

Nesse caso, a Sabesp mandou o carteiro de volta, não quis receber a intimação do tribunal e só compareceu com um representante porque o próprio governador a enviou. Eu estava no tribunal. A idosa perdeu a causa. Como não considerar o governo Alckmin um jab de direita nos cidadãos?

Faz 3.600 anos que a democracia surgiu no mundo, mas Alckmin e Haddad parece que não dedicaram tempo para aprender  sobre esse regime de o povo se governar a si mesmo, maravilha de vida global, estupenda prática possível de liberdade e justiça.

Surgida como combate à tirania, a própria Atenas se debatia em vão para impedir, como ainda acontece hoje, que cada representante do povo no governo também se tornasse um ditador, cada um deles um ditadorzinho à parte, instalados nas instituições públicas, palácios, balcões, portarias, parlamentos.

Atenas cresceu e representantes do povo no governo foram necessários. Vem ainda de lá esse embrião da democracia representativa. O que restou da democracia neste nosso planeta azul, após tanto sangue derramado pelos que a amam, que pena, é a contemporânea tirania democrática fragmentada.

Para finalizar, olho no olho, Alckmin e Haddad: a democracia não foi uma invenção grega. É falsa a concepção de que Atenas criou a ideia e a prática da democracia. Não é inovação grega a prática democrática de assembleias autônomas. Surgiu pela primeira vez há quase quatro milênios no Oriente, na região da Síria, Irã e Iraque, então habitada pelos hebreus.

O Velho Testamento, livro da saga dos hebreus, é farto em citações sobre assembleias e seus anciãos. O costume de autogoverno popular, a democracia, migrou para o leste, no subcontinente indiano, 1.500 anos antes de Cristo. Depois para o oeste, entre as cidades fenícias como Bíblos e Sidon, e finalmente para Atenas. Ao chegar ao Ocidente, alterou radicalmente o mundo. Menos a Cantareira, a Sabesp e a Eletropaulo, onde o teimoso Stalin instalou residência "



A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania

CÁLCULO PERCENTUAL DA DESPESA COM PESSOAL EM RELAÇÃO A RECEITA CORRENTE LÍQUIDA DO MUNICÍPIO - 2015

Receita corrente líquida em 2014: 576,67 milhões

Despesa com pessoal em 2014: 236,23 milhões

Gasto com pessoal em relação a receita em 2014: 40,96%

Observações:

1) Considerando a mesma receita corrente líquida de 2014, para 2015, bem como o limite de gastos com pessoal, estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, demonstra-se que:

DP (despesa com pessoal), RCL (receita corrente líquida), Limite prudencial pela Lei de Responsabilidade Fiscal (gastos com pessoal) = 51,3%

DP/RCL = 51,3%

DP/576,67 = 0,513

DP = 295,83 milhões

Portanto, a Administração Municipal poderia ter um gasto de até 295,83 milhões com pessoal em 2014 e, ainda assim, estaria obedecendo o limite prudencial estabelecido por lei.

Considerando, que a Administração Municipal gastou apenas 236,23 milhões com o pessoal em 2014, observa-se a possibilidade de um aumento de 30% na folha de pagamento (2015), de forma a atender as exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Valor máximo de reajuste= 295,83/236,23 = 1,25 (25%)

2) Considerando o crescimento vegetativo de 2,75% na folha de pagamento (2015), observa-se a possibilidade de um reajuste de 26,5% para todos os servidores municipais em março/2015 (Lei de Responsabilidade Fiscal), conforme demonstrado abaixo:

236,23 + 2,75% = 242,73 (folha de pagamento 2014 + crescimento vegetativo)

295,83/242,73 (gasto possível com a folha de pagamento de 2015 considerando a mesma RCL de 2014) = 21,8%

3) Os cálculos acima foram utilizados como referência, para a negociação da campanha salarial de 2015 (data base em março).

4) Os dados referentes a receita corrente líquida e despesas com pessoal foram extraídos do Boletim Oficial do Município.

“A decisão de reajustar a tarifa é muito mais política do que técnica”

O ano começou quente e promete muitas confrontações, dos gabinetes às ruas, palco por excelência das grandes lutas populares. Com os ajustes anunciados pelos governos de todas as esferas, já tivemos vários protestos pelo país. Até aqui, os mais simbólicos são os do Movimento pelo Passe Livre (MPL), catalisador das jornadas de junho de 2013 e que tem feito uma série de manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público.

“Acho que existe, sim, uma recusa em entender movimentos horizontais e outras maneiras de fazer política, para além dos esquemas partidários mais fechados”, disse Andreza Delgado, do MPL, em entrevista ao Correio. “‘Passe livre estudantil' não é o nome certo, dado que é uma cota muito fechada; só alunos de universidade e escola públicas conseguem. Os alunos de instituições privadas também deveriam ter o mesmo acesso. Quem diria que aquele que já foi ministro da Educação, agora prefeito, pensa num modelo tão fechado de ‘passe livre', isto é, casa-escola-casa”, completou, a fim de desmistificar a propaganda governista em torno de uma concessão limitada.

Na conversa, a entrevistada comenta como tem sido a dinâmica das manifestações, as estratégias de divulgação da pauta e as abusivas atuações da polícia, no sentido de esvaziar os atos pela força. “Claro que a violência policial afasta as pessoas da rua. Ninguém quer sair de casa imaginando que pode voltar com uma bala de borracha alojada na perna ou no olho. Apesar do rapaz que está em tratamento, não vimos a repressão policial na grande mídia. E quando vemos, é porque algum fotógrafo deles foi atingido”, comentou.

Por fim, Andreza lembra da auditoria contratada pela própria prefeitura, que apontou mais de 600 irregularidades em seus contratos de operação do transporte rodoviário. Com essa base, ela reforça a tese de que “a decisão de reajustar a tarifa é muito mais política do que técnica”.

A entrevista completa, gravada nos estúdios da webrádio Central, pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa o aumento das tarifas de trens, ônibus e metrôs, sancionado em conjunto pelo governo estadual e a prefeitura da capital?

Andreza Delgado: Nossa análise é de que o governador e o prefeito não escutaram as ruas. Em 2013, muita gente saiu pra rua contra o aumento (para R$ 3,20), a população conseguiu a revogação, mas o prefeito e o governador decidiram aumentar as tarifas no começo de 2015, sem convidar a população para debater, sem criar nenhum canal de diálogo. É a falta de costume de ouvir a população.

Correio da Cidadania: Você enxerga um simbolismo no reajuste, no sentido de que os atuais grupos políticos dominantes não queiram aceitar nenhuma vitória dos movimentos sociais mais novos, especialmente aqueles descolados de agendas partidárias?

Andreza Delgado: Da parte de quem está no poder, sim. Vimos o governo chamar sua base, a exemplo da UNE, para conversar em seu gabinete sobre “passe livre estudantil”, reajuste da tarifa, mas não vimos chamar a população. Quando o próprio prefeito chama a juventude e grupos de seu partido, mas exclui os demais atores, mostra-se essa recusa. Acho que existe, sim, uma recusa em entender movimentos horizontais e outras maneiras de fazer política, para além dos esquemas partidários mais fechados.

Correio da Cidadania: O que pensa das argumentações “técnicas” dos governantes sobre a necessidade do aumento?

Andreza Delgado: O MPL sempre parte do pressuposto de que todo aumento é uma questão mais política do que técnica. Mas, como disse, a prefeitura e o governo estadual não querem dialogar com a população. Essa resposta técnica é a mesma coisa de 2013, ao alegarem que “teria de tirar da educação ou da moradia” para não reajustarem a tarifa.

Porém, dessa vez a conjuntura tem um elemento novo: a auditoria contratada pela própria prefeitura, que descobriu lucros abusivos dos empresários dos transportes. E gastou-se uma boa grana para fazer a auditoria. Eles viram que os empresários estavam lucrando 7%, 8% a mais que o devido e, em vez de tirarem do lucro empresarial, decidem aumentar a tarifa, ou seja, tirar do lado mais fraco.

Sempre haverá argumentos técnicos, mas a escolha do aumento é mais política do que técnica.

Correio da Cidadania: E sobre o chamado “passe livre estudantil”?

Andreza Delgado: Sobre o passe livre estudantil, podemos dizer que é uma vitória. Mas para quem não sabe, o MPL já existe há 10 anos e o começo do movimento reivindicava o passe livre estudantil. No entanto, “passe livre” não é o nome certo, dado que é uma cota muito fechada; só alunos de universidade e escola públicas conseguem. Os alunos de instituições privadas também deveriam ter o mesmo acesso. E é um modelo limitado. Quem diria que aquele que já foi ministro da Educação, agora prefeito, pensa num modelo tão fechado de “passe livre”, isto é, casa-escola-casa (48 passagens por mês).

Correio da Cidadania: Em caso de não se reverter o aumento, o que o movimento pretende pautar a respeito do transporte público? Quais as estratégias para a continuidade da luta de vocês, especialmente se a atual sequência de atos perder fôlego?

Andreza Delgado: Como dito, o movimento existe há anos, portanto, já sabemos como é perder. Em 2011 fomos às ruas e não conseguimos a revogação. Mas estamos aí, pensando num novo modelo de transporte público. Desde junho de 2013, estamos indo às periferias fazer trabalho com moradores desses bairros. O saldo que fica da luta é a organização e a ampliação do debate da tarifa zero junto à população. Continuaremos discutindo o transporte, a almejada tarifa zero, o acesso geral ao transporte, os cortes de linha que deixam alguns pontos da cidade sem ônibus...

Correio da Cidadania: O que você comenta e analisa sobre a atual jornada de manifestações de rua do MPL, com respectivo tratamento do Estado?

Andreza Delgado: Temos feito atos no centro e também na periferia. Os atos da periferia são pequenos, servem mais como diálogo com a população e para ter mais tempo de panfletagem, coisa que no centro não dá pra fazer. Os atos do centro têm sido cheios de gente, mas a violência policial é presente e marcante, de modo que só conseguimos terminar dois ou três atos, de sete que já fizemos. Temos também uma nova vítima da bala de borracha, no caso, o companheiro William, que está em tratamento e ainda corre risco de perder a visão de um olho.

A repressão é marcante, é difícil terminar um ato no centro de forma pacífica, sem violência policial. Queremos, e é importante, ter atos com começo, meio e fim. Claro que a violência policial afasta as pessoas da rua. Ninguém quer sair de casa imaginando que pode voltar com uma bala de borracha alojada na perna ou no olho. Essa repressão afasta as pessoas, mesmo assim, nossos atos têm poder de convocação. Afinal, como cantamos na rua, “mãos para o alto, 3,50 é um assalto”.

E a população está cansada. É aumento atrás de aumento e nada de retorno na devida proporção, no máximo recebemos pela metade.

Correio da Cidadania: Muita gente diz que a mídia voltou sua cabeça para maio de 2013. O que diria a respeito da cobertura que os grandes veículos têm feito?

Andreza Delgado: Uma das perguntas que mais respondemos é se vamos “fazer outro junho de 2013”. Não dá pra fazer de novo, reproduzir tudo. Apesar do rapaz que está em tratamento, não vimos a repressão policial na grande mídia. E quando vemos, é porque algum fotógrafo deles foi atingido.

Correio da Cidadania: Diante dos fatos políticos e econômicos que marcam o país neste início de ano, o que você vislumbra em termos de lutas sociais para este 2015?

Andreza Delgado: Como movimento social, não perdemos muito tempo com argumentos técnicos para os ajustes. Mas o ano começou com o aumento da tarifa, o problema da água está forte, o governo, entre aspas de esquerda, anuncia cortes de orçamento... A coisa vai além do nosso campo, mas deve ser um ano caótico e com bastante luta social.

Quatro crises simultâneas e profundas significam a exaustão do modelo econômico

A economia brasileira explorou na primeira década deste século um projeto de desenvolvimento, ora denominado de nacional-desenvolvimentista, ora de social-desenvolvimentista, que se apoiava externamente no argumento das vantagens comparativas naturais das terras, águas, minas e campos petroleiros - daí se lhe acrescentar também o qualificativo de ‘primário-exportador'.

No último quadriênio, manifestaram-se evidências da exaustão desse ‘modelo', mas foi preciso que em 2015 se evidenciassem quatro crises simultâneas – do sistema Petrobras, do sistema hídrico (água para consumo urbano e para produção hidroelétrica), da reversão dos preços externos das ‘commodities' (petróleo, ferro, açúcar, soja, milho, carnes etc.) e da forte deficiência nas finanças públicas - para que caísse a ficha de que precisamos repensar estruturalmente o ‘nacional-desenvolvimentismo  primário-exportador'.

O arranjo de interesses no sistema Petrobrás, no setor mineral, na economia do agronegócio e no sistema hidroelétrico, com diversidades específicas a seguir analisadas, apoiou-se até o presente no argumento do lucro extraordinário atribuído à propriedade de recursos naturais específicos, circunstancialmente muito valorizados no mercado externo pelo potencial de gerar ‘commodities', conceito que os economistas clássicos chamavam de ‘renda fundiária'.

A conjugação ou condensação dessas quatro crises conjunturais mencionadas (petróleo, água e hidroeletricidade, declínio de preço das ‘commodities' e crise fiscal) afeta o eixo articulador no qual o país vinha se especializando, qual seja, a super-exploração de recursos naturais. Conquanto na conjuntura os efeitos econômicos e sociais de quatro crises simultâneas sejam devastadores, e, portanto, há que se pensar em soluções emergenciais, o momento é também muito oportuno para pensar saídas estruturais mais amigáveis com a natureza e a sociedade. As crises que se revelam com epicentro em 2015 apresentam dinâmicas próprias, mas também muitas conexões. Convém explicitá-las.

A falta de água potável e possível escassez de energia hidroelétrica, com forte implicação à vida urbana, se analisada com algum rigor técnico, revela um processo de mudança climática operante há pelo menos um quinquênio, de sorte a exaurir reservatórios face a um padrão de consumo urbano, industrial e principalmente agrícola altamente perdulário.

Mas é certamente nas bacias hidrográficas localizadas na zona rural que precisamos fazer o devido destaque: houve e continua a haver superconsumo de água na agricultura de ‘commodities' e também precária conservação de matas ciliares e encostas de morros. E isto cai na conta de uma irresponsável (socialmente) tradição de deixar o território das bacias hidrográficas sob manejo estritamente mercantil, sem levar em conta a função social e ambiental do espaço territorial.

O sistema Petrobrás passa por suas crises graves: a interna, revelada pela operação ‘Lava-Jato', e a externa, manifesta pelo declínio forte do preço do barril de petróleo, que caiu de 120 dólares para 50, em um semestre, sem aparente tendência de recuperação a médio prazo.

É precisamente este segundo movimento que torna a crise interna muito mais grave – o lucro extraordinário do petróleo se esvaiu e de repente toda a estratégia de acelerada exploração das reservas do pré-sal terá que ser revista. Projetos de exploração, encomendas industriais e toda sorte de parcerias lícitas e ilícitas que se estabeleceram para explorar muito rapidamente aquelas reservas esvaíram-se com o súbito declínio da renda fundiária do petróleo.

Porém, talvez algo de bom possa se colher dessa situação conjunturalmente adversa. Porque não é saudável uma estratégia de super-exploração, com todos os riscos nela contidos e agora revelados, sem falar nos riscos evidentes de contaminação ambiental.

Finalmente, a reversão dos preços externos das ‘commodities' agrícolas e minerais, em paralelo à crise hídrica, coloca para a nossa economia do agronegócio um claro sinal amarelo, ainda mais que o Estado em crise fiscal terá pouca margem de manobra para irrigar de dinheiro de crédito e subvenções fiscais o Plano Safra 2015-2016. Subvenções fiscais e financeiras na conjuntura somente se justificam se vinculadas a mudanças econômicas, tecnológicas e ambientais na agricultura, consistentes com programas que ajudem a resolver os dilemas hídricos, energéticos e sociais apontados anteriormente.

Por último, devo confessar, depois dessas sugestões de “otimismo da vontade”, algum “pessimismo da razão”, quando vejo a forma como o sistema real de poder vem tratando as quatro crises simultâneas a que me reportei. Mas não vou entrar neste campo, até por falta de espaço neste breve artigo.

Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

Desafios à educação escola

A educação escolar exerce papel fundamental em todo processo de transformação social. À semelhança da política e da religião, a educação serve para libertar ou alienar; despertar protagonismo ou favorecer o conformismo; incutir visão crítica ou legitimar o status quo, como se ele fosse insuperável e imutável; suscitar práxis transformadora ou sacralizar o sistema de dominação.

Nesse inicio de século XXI, a educação escolar difere muito da que predominou no século XX. Hoje, nosso cotidiano é invadido por novas tecnologias que nos trazem, em tempo real, informações capazes de interferir em nossa forma de existência e de relacionamentos (ciberespaço, relações virtuais, crise das ideologias libertárias, novos perfis familiares e sexuais, monopólio e manipulação da informação etc.).

Por viver em uma mudança de época e trafegarmos entre a modernidade e a pós-modernidade, somos ameaçados pela crise de identidade teórica. O instrumental teórico que tanto nos confortava e incentivava no século XX, e que nos parecia tão sólido, ruiu com a crise da modernidade e da razão instrumental.

O que impede a educação de formar pessoas altruístas? Falta uma educação que, além da escolaridade, de transmissão cultural do país e da humanidade, suscite nos educandos visão crítica da realidade e protagonismo social transformador.

De fato, em muitos países a educação escolar se tornou uma prisão da mente, onde as disciplinas curriculares são sucessivamente repetidas, visando à qualificação da mão de obra destinada ao mercado de trabalho. Não se cogita a prioridade de formar cidadãos e cidadãs solidariamente comprometidos com o projeto social emancipatório.

Vivemos, hoje, na era do impasse frente ao futuro emancipado. Estamos no limbo do processo libertário. Movimentos, grupos e partidos de esquerda, quando existem, parecem todos perplexos perante o futuro. Muitos cedem à força cooptadora do neoliberalismo e trocam o projeto de libertação social pelo mero usufruto do poder, ainda que isso implique corrupção e traição às esperanças dos oprimidos.

A hegemonia capitalista exerce um poder tão avassalador que muitos de nós abdicam do propósito de construir um novo modelo civilizatório. Aos poucos, como se fosse um vírus incontrolável, o capitalismo se impõe em nossas relações pessoais e sociais. Vamos aderindo à fé idolátrica de que “fora do mercado não há salvação”.

Na esfera pessoal, abrimos mão de nossa ideologia libertária em troca de uma zona de conforto que nos permita acesso ao poder e à riqueza, livrando-nos da ameaça de integrar o contingente de 2,6 bilhões de pessoas que, hoje, sobrevivem com renda diária inferior a 2 dólares!

A escola é, sim, um espaço político. Se não tiver clareza de seu projeto político pedagógico, corre o risco de se transformar em mero balcão de negócios para diplomar competidores avessos à ética e aos direitos humanos.

Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.

Website:  http://www.freibetto.org/

Twitter: @freibetto.

Cidadão é o maior penalizado por 20 anos de gestão irresponsável da água em SP

Desde o final de 2013, a população paulistana tomou ciência da restrição hídrica que se aproximava, decorrente da falta de chuvas e dos baixos níveis de água nos reservatórios empregados no abastecimento público. Já em 2014, assistimos atônitos aos recordes e mais recordes de baixos níveis de água nos reservatórios. Agora, no início de 2015, essa situação segue pior ainda, com perspectivas sombrias para o restante do ano. Mas são inúmeras as cidades do interior de São Paulo atingidas pela falta de água, inclusive em outros estados. No presente, a falta de água não é mais gritante, pois na cidade de São Paulo os cidadãos dão sua cota de colaboração, reduzindo o consumo como podem. Do contrário, o poço já teria secado.

Esta grave crise serviu para mostrar que a lição de casa não foi feita e, seja para o município, para o estado ou mesmo para a União, muita coisa tem que mudar a partir deste triste cenário. Ficou claríssimo para quem quer ver que nossas leis e a gestão das águas não são satisfatórias e a condução política não preserva o cidadão e o meio ambiente, ao menos na oferta do serviço público, como da água tratada de qualidade e na quantidade adequadas.

Nestes últimos 20 anos, o Estado não planejou e se preparou adequadamente e o cidadão será penalizado por não ter água necessária aos seus usos históricos e culturais. É novamente penalizado por ter que pagar a conta, através de multas e/ou elevação de tarifas e, eventualmente, será mais penalizado ainda por ter seu consumo medido pela média de 2014 (medida em estudo pelo governo estadual). Uma média, sem dúvida, fora do padrão histórico de consumo de cada família, já que foi em 2014 que o cidadão ativo reduziu o consumo. E, por fim, o cidadão é o maior penalizado, pois caberá a ele a maior parcela de contribuição, seja financeira ou de restrição hídrica.

Entre outros prejuízos, soma-se a menor quantidade de água para a indústria e agricultura, que sem dúvida impactará o emprego, renda e os preços, principalmente dos produtos originados do setor agrícola. Na questão da gestão das águas, chegamos ao fundo do poço. Se ficou alguma coisa de bom, é que a população sabe fazer a sua parte.

Um país com cerca de 12% da água doce superficial do mundo, apesar de não tão bem distribuída pelo território nacional, não pode desconsiderar planejamento no curto, médio e longo prazos. Ainda mais tendo nosso país sólida tradição de pesquisas nas áreas de hidrologia, hidráulica, recursos hídricos (aspectos qualitativo e quantitativo), ecologia, limnologia, saneamento, legislação ambiental, por exemplo, com excelentes universidades, centros e grupos de pesquisas, além de recurso financeiro suficiente, como uma das maiores economias do mundo.

Portanto, não necessitamos importar especialistas para nos dizer como fazer, mas trocar experiências é sempre importante. Nossos técnicos são bem formados e sabem fazer, quando a eles é passada a tarefa. Daí concluir que o modo de gerir a questão das águas no Brasil não está baseado primeiramente em premissas científicas, na pesquisa estruturada, na consulta ao corpo técnico, ou mesmo em questões de sustentabilidade e meio ambiente, mas, sim, deixa transparecer que são decisões meramente políticas.

Mas não transparecem ser decisões políticas como parte de um claro plano de governo, aberto, transparente, escrito e em diálogo com a sociedade. Neste momento de crise, o que compreendemos das declarações de muitos técnicos do setor, especialistas, gestores e políticos ligados ao tema, divulgadas pelos diversos meios de comunicações, deixa claro que são sempre decisões tomadas de última hora, pontuais e emergenciais, torcendo para Deus ser brasileiro, esperando por São Pedro fazer o seu serviço ou culpando a natureza, mesmo quando “trabalhamos sem parar” (1). São apresentadas soluções imediatistas tal como puxadinhos, remendos, colcha de retalhos ou tapa buracos, como a retirada de um primeiro volume morto, depois de um segundo, seguindo para um terceiro e derradeiro volume morto (se necessário), seja de um reservatório e depois de outro e mais outro, torcendo pelas chuvas, que chegaram, mas de pequena intensidade.

Se não der certo, e não chover, o reservatório da vez será a Billings. Há também de se manter o rio Pinheiros com águas altas e as comportas fechadas, no Cebolão, junto ao rio Tietê, para reverter suas águas ao reservatório Billings, mas também para gerar hidroeletricidade em Henry Boarden, na Baixada Santista, quem sabe contribuindo para evitar outro apaguinho/blecaute. De outro rio retira-se mais 0,5 m 3 /s. Outra ideia é interligar os mananciais, para retirar água de dado reservatório na medida da necessidade, enquanto se reduz em outro. E como recentemente declarou o secretário de Saneamento e Recursos Hídricos, o Prof. Dr. Benedito Braga, em seis meses não é possível fazer obras da envergadura adequada ao problema.

Durante 2014, nosso governador, pessoalmente, sempre reforçou que não teríamos problemas, pois as chuvas logo estariam aí e tudo se resolveria. As chuvas ainda não chegaram, ao menos onde deveriam. Há planos de retirar águas do rio Ribeira de Iguape e autorização para captar água do Paraíba do Sul. Outra opção, na gestão da crise do abastecimento público, é reduzir a pressão na rede de abastecimento, ou mesmo cortar de vez o abastecimento, com rodízio entre setores da cidade, que podem ter água em certos dias e horários da semana, como forma de reduzir o volume de água ofertada e refletir na redução do consumo.

Correm no meio da cidade importantes rios como o Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, por exemplo, esgotos a céu aberto, não sendo possível empregar suas águas nem mesmo para a rega de parques e jardins, quanto mais para o consumo humano. Não há efetiva e substancial captação de água de chuva para emprego no abastecimento púbico. Há praticamente 30% de fuga da água limpa que percorre as tubulações até chegar em nossas casas. Isso sem falar da descaracterização total do ecossistema reservatório, com as comunidades biológicas constituintes mortas ou substituídas, decorrente da quase seca total do reservatório, como se de fato o reservatório fosse unicamente uma caixa de água, não mais um estabelecido ecossistema, com estrutura, função e dinâmica próprias, e prestando inúmeros e importantes serviços ecossistêmicos.

E nem mesmo há reconhecimento oficial formal de que estamos em período de forte restrição hídrica e de racionamento. Isso tudo é a política de Estado para a gestão dos recursos hídricos para abastecimento público em São Paulo? Esse é o plano de governo para a gestão das águas no estado? Vale lembrar que somente a Região Metropolitana de São Paulo é composta de quase 20 milhões de habitantes e qualquer coisa para atender a demanda desse universo de pessoas não pode ser realizada sem planejamento adequado.

Segundo Brasil (2003) (2), os sistemas de abastecimento de água devem ser dimensionados para atender às necessidades de água da região beneficiada. Ainda, segundo esse mesmo documento, é importante que as projeções das necessidades e as disponibilidades dos recursos hídricos, em função do aquecimento da economia e do crescimento demográfico, sejam calculadas com antecipação.

Os sistemas devem ser planejados, arquitetados e construídos, para funcionarem durante muito tempo sem riscos de deterioração. Apesar disso, as atividades de monitoramento do sistema, buscando detectar, no mais curto espaço de tempo, possíveis problemas ou defeitos, são de importância capital, para garantir a retroalimentação sistêmica, relacionada com as atividades de manutenção. Estas são as premissas do plano de governo que vivenciamos em São Paulo?

Sendo urgente despender esforços para equacionar questões relativas à manutenção da qualidade e quantidade da água nos mananciais e visando minimizar os problemas relacionados ao abastecimento público e esgotamento sanitário nos grandes centros urbanos e garantir mananciais mais saudáveis para gerações futuras, são propostas (3):

a) nenhuma entidade federal, estadual, municipal ou privada poderá captar qualquer quantidade de água bruta sem a aprovação prévia dos órgãos competentes;

b) toda entidade federal, estadual, municipal ou privada terá o prazo máximo de cinco anos para regularizar e cadastrar seu sistema de captação de água bruta em operação, atendendo normas estabelecidas pelas diferentes esferas de governo; no caso de descumprimento, ficará definida multa diária;

c) definir em lei a quantidade máxima de água bruta que poderá ser captada, com base na quantidade – vazão e carga retiradas, levando em consideração a vazão e carga do manancial (rio) e a recarga de lagos e reservatórios, discriminando responsabilidades e sanções quando do seu descumprimento;

d) o não cumprimento das normativas apresentadas nos itens anteriores implicará em não ter analisadas novas solicitações de captação, até a regularização da atual situação;

e) a obrigatoriedade definida em lei que, para cada metro cúbico de água potável ofertada à população, seja definido em projeto a respectiva coleta e tratamento da água servida. A oferta de água potável e coleta e tratamento do esgoto gerado devem ser entendidos como um sistema único, integrados e indissociáveis, implicando que sejam considerados conjuntamente no planejamento, implantação e solicitação de recursos, com pena de não ter aprovada a proposta de captação de água bruta;

f) definir em lei o limite máximo de 10% para a fuga de água, implicando em multas e sanções quando do seu não cumprimento; para tanto será obrigatória a implantação de sólido programa de monitoramento de perdas e controle da água ofertada;

g) a obrigatoriedade definida em lei para que, no prazo máximo de dez anos, todo esgoto gerado seja efetivamente coletado e tratado (descarte zero), definindo severas sanções às diferentes esferas de governo e seus dirigentes quando da não observância da lei;

h) empreendimentos já instalados têm o prazo de dez anos para se integrarem à rede coletora de esgotos; após esse prazo, serão integrados compulsoriamente, arcando com os custos de instalação, somados às despesas de multas e custos processuais;

i) definir em lei que novos empreendimentos somente serão aprovados para uso após serem definitivamente integrados à rede coletora de esgoto;

j) definir em lei prazos para a instalação de sistemas de tratamento e descarte de lodo, proveniente das estações de tratamento de água para o abastecimento público (ETAs) e das estações de tratamento de esgotos (ETEs), com definições de responsabilidades, sanções e multas quando do seu não cumprimento;

k) definir em lei que novos empreendimentos (condomínios, museus, clubes, estádios, escolas, shopping centers, parques temáticos, indústrias, hospitais, hotéis, motéis, restaurantes, casas de espetáculos e de exposições e outros estabelecimentos comerciais e empreendimentos de grande porte público e privado, com base na área física instalada e no número de pessoas atendidas) implantem sistema de reuso de água, com prazos de instalação e projetos aprovados por órgãos competentes;

l) definir que estes mesmos empreendimentos também implantem sistema de captação de água de chuva, com prazos de instalação e projetos aprovados por órgãos competentes;

m) definir em lei o prazo de dez anos para que empreendimentos já instalados (ver item k) implantem sistema de captação de água de chuva, com prazos de instalação e projetos aprovados por órgãos competentes;

n) cobrar de modo diferenciado e escalonado, segundo o consumo de água: quanto mais consome, mais paga, garantindo uma tarifa social mínima de ao menos 110 litros/habitante/dia;

o) instalar medidores de consumo de água individuais – uma casa, um medidor de consumo;

p) empreender esforços visando ampliar o controle e a vigilância da qualidade da água pelos órgãos responsáveis pelo abastecimento e por órgãos de saúde pública, da água bruta à torneira para o consumidor final;

q) empreender esforços em todos os níveis, com campanhas educacionais sobre a importância da água, seu uso racional, a preservação de sua qualidade e quantidade;

r) empreender esforços em campanhas educacionais relacionadas à saúde pública, reforçando a importância de hábitos simples, como lavar as mãos com sabão após usar o banheiro e antes das refeições;

s) estabelecer que estado e prefeitura obrigatoriamente implantem secretaria de meio ambiente e de saneamento;

t) definir que toda a secretaria de estado (federal, estaduais e municipais), de meio ambiente e de saneamento, deva manter site atualizado, com as ações empreendidas e metas para o sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

A intervenção divina não nos trará a água desejada e necessária. Caberá ao homem planejar e vislumbrar cenários futuros, corrigindo distorções no curso dos acontecimentos.

Notas:

(1) - Declaração do Governador Geraldo Alkmin, Folha de São Paulo, de 25 de Janeiro de 2015. Caderno Cotidiano.

(2) - BRASIL, Ministério da Integração Nacional. (MI). Secretaria Nacional de Defesa Civil. (SEDEC), Manual de desastres humanos: desastres humanos de natureza tecnológica – v. 2. – I parte / Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. – Brasília: MI, 452p, 2003.

(3) - Marcelo Pompêo & Viviane Moschini-Carlos, O abastecimento de água e o esgotamento sanitário: propostas para minimizar os problemas no Brasil , In: André Henrique Rosa, Leonardo Fernandes Fraceto, Viviane Moschini - Carlos, Meio Ambiente e Sustentabilidade , Porto Alegre: Bookman Companhia Editora Ltda., 2012.

Marcelo Pompêo é professor do departamento de Ecologia da USP.

O que nos promete o ano que se inicia?

Os anos de 1980 são chamados de “a década perdida”. Isso segundo a ótica do capital, que sempre enxerga cifrões diante do seu nariz. Entretanto, aquela década foi extremamente nociva para a classe trabalhadora e para o povo em geral. O desemprego, o achatamento salarial, a miséria crescente invadindo os lares, o desespero de chefes e arrimos de famílias que não conseguiam encontrar saída para sua situação, e outros males, nos permitem dizer que não foram apenas anos de “década perdida”, mas de vidas comprometidas.

Os indicadores políticos e econômicos apontam 2015 como mais um ano de enormes dificuldades para os que vivem do seu trabalho. Do lado político, teremos que conviver com um Congresso Nacional mais conservador que os últimos, o que implicará em medidas políticas para garantir mais vantagens econômicas para o capital, tanto o industrial, quanto o do agronegócio e o financeiro. Logo, mais problemas para os trabalhadores em geral.

Como já tratamos no artigo anterior, a composição do novo governo Dilma, rigorosamente comprometida com os interesses do capital, já nos mostra que sua política econômica será de maior arrocho sobre os salários do funcionalismo e de redução de investimentos nos setores sociais da Saúde, Educação, Moradia, Previdência Social. No caso da Previdência, especialmente para trabalhadores doentes que, ao que tudo indica, terão sua remuneração mensal achatada. Diz o velho provérbio popular: “desgraça pouca é bobagem”.

Do ponto de vista econômico, até o momento não há um só indicador de que haverá crescimento da economia produtiva industrial, nem mesmo crescimento das exportações industriais ou de produtos agrícolas. Claro que, se isto ocorrer, implicará em redução do emprego, na cidade e no campo, com o respectivo processo de achatamento salarial para quem conseguir se manter no trabalho - porque, no caso, será grande também o processo da rotatividade da mão de obra. A cada emprego perdido, um novo só virá com redução salarial, pois é também assim que o capital explora quem produz suas riquezas.

Se a vida de milhões de famílias já não é das melhores, o que se pode esperar caso isso tudo aconteça? De mais uma coisa devemos ter consciência: o crescimento de tais dificuldades para o povo redundará também no crescimento da já incontrolável violência, que destrói vidas e gera a insegurança em geral, pois nem mesmo os mais abastados estão fora do seu alcance. Que o digam as estatísticas oficiais.

Resta refletir sobre como reagirá o povo, como reagirão os setores engajados nos movimentos sociais mais recentes (esperar dos movimentos mais antigos é acreditar que o Papai Noel tenha passado pelo Brasil, fazendo derramar seu saco de presentes em termos de consciência cívica).

Quanto aos nossos (des)governantes, estes estão preparados para manter e até mesmo ampliar a repressão sobre a massa humana insatisfeita com os desmandos que tomam conta do país. Não se pode esquecer que nossas “tropas” foram e continuam sendo adestradas sofisticadamente para atacar os movimentos sociais que ousem legitimamente protestar e exigir seus direitos sonegados.

Apesar do quadro nada animador, acreditamos que as novas gerações não irão abrir mão dos seus legítimos direitos, de ousarem se tornar protagonistas das mudanças estruturais há tantos anos exigidas pelo povo, sempre prometidas em tempos eleitorais e sempre ignoradas durante os anos seguintes às eleições. Cremos nessas reações, porque o sabor das várias iniciativas de ações reivindicatórias, praticadas por trabalhadores dos vários setores da economia, não foi extinto pela repressão aplicada sobre o povo a fim de garantir o “sucesso” da Copa. Apesar da criminosa violência praticada pelas polícias, que conseguiu apagar muita chama, cremos que muita brasa está fumegando por baixo das cinzas e preparando a lenha que deverá ser acesa no momento oportuno.

Cremos também que o sabor das mobilizações de 2013 tenha deixado um gostinho de “quero mais”, mesmo sabendo que a repressão estará atenta. Não se pode esquecer das lições da História da Humanidade: toda tirania tem seu tempo de duração e seu fim decretado. O que se espera é que as lições das experiências anteriores façam crescer a compreensão de ser preciso sempre dar mais qualidade às ações de massa, a começar pela sua organização de base, nuclear.

O povo precisa entender que não se pode viver num clima de “paz de cemitério”, pois a verdadeira paz, como nos ensinam experiências seculares, é fruto da justiça social. Enquanto a justiça não for conquistada pelo povo, a paz não ordenará a vida do povo, nem do conjunto da nação.

Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

Atentado ao Charlie Hebdo: porque não se trata de liberdade de expressão.

Como é de se esperar, muitas análises e opiniões sobre o atentado terrorista contra a redação da revista Charlie Hebdo e o assassinato de dez de seus membros e dois policiais, na França, centram-se na questão da liberdade de expressão. Mas este é um ponto de partida equivocado. Não porque seja desimportante, mas por causa dos equivocados termos em que esta discussão está posta e porque não leva a lugar algum.

Primeiro, a liberdade de expressão tende a ser vista sob uma perspectiva etnocêntrica – ocidentalocêntrica, para ser mais preciso – que opõe nós, os supostos defensores da liberdade de expressão, e eles, os inimigos da liberdade, partidários da servidão (em termos hayekianos). Essa postura ignora as diferenças culturais legítimas que existem entre essas duas culturas e assume que os nossos valores são melhores. Há um juízo de valor implícito aí.

Mas também ignora que quando estamos falando de religião, âmbito do sagrado, as pessoas se ofendem com mais facilidade e, só porque o Ocidente é considerado mais laico do que os muçulmanos, isso não significa que cristãos também não se indignem diante de um episódio do seriado animado South Park, por exemplo, onde os padres são retratados como pedófilos inveterados.

É bom lembrar o que diz a sabedoria popular: pimenta no dos outros é refresco; xingar a mãe dos outros é sempre brincadeira, mas quando os outros xingam a sua a brincadeira acaba. Entretanto, assim como a maioria dos muçulmanos, a maioria dos cristãos não atentaria contra a vida dos produtores de South Park. Extremistas fanáticos, notadamente religiosos, existem em qualquer sociedade, em qualquer cultura, é óbvio, mas é sempre bom lembrar, já que o discurso cotidiano que se criou em torno do Islã os vê todos indistintamente como loucos fanatizados e não como pessoas normais, tais como você e eu.

Em segundo lugar, a questão da liberdade de expressão é uma problemática filosófica eterna e sem fim, um jogo de soma zero, mas no discurso corrente, assim como no caso das opiniões sobre o Charlie Hedbo, a liberdade de expressão é assumida como um valor absoluto. Mas ela não é. E a liberdade religiosa? E o direito a ter suas crenças respeitadas? Não seriam também um corolário do princípio de liberdade de expressão?

A verdade é que esse tipo de liberdade está limitado pelos mesmos limites que se impõem a qualquer outro tipo de liberdade: a sua termina onde começa a minha. O problema é que tais limites são impossíveis de serem determinados, tanto mais formalmente, de modo que a liberdade de expressão decorre sempre de um ajuste diplomático entre ela e outras – e de outrem – liberdades.

É por isso que centrar a discussão em torno da questão da liberdade de expressão é um beco sem saída; ainda pior: um beco perigoso. Sua conclusão é que nós estamos certos e eles errados, nós somos melhores e eles piores, e tal conclusão justifica qualquer coisa que em outras circunstâncias veríamos como odiosa, tal como invadir um país ao custo de meio milhão de mortos, como foi o caso dos 10 anos de “guerra”/ocupação do Iraque. Não à toa, naquela ocasião o argumento principal foi justamente a “liberdade”, essa noção abstrata, tão desprovida de conteúdo real, porém tão carregada de juízos de valor e tão eficaz para mobilizar corações e mentes. Afinal, ninguém quer ser contrário à liberdade.

Portanto, seria melhor que a discussão se centrasse em outros pontos, como o contexto histórico que vive a Europa atualmente e as implicações políticas e sociais do atentado. A França abriga hoje a maior comunidade islâmica da Europa, uma enorme comunidade marginalizada e oprimida, cultural e socialmente. Atitudes xenofóbicas e islamofóbicas são disseminadas amplamente pela maioria da população francesa, e não é de hoje. Tensões entre as duas comunidades étnicas vêm desde o início do fluxo migratório que coincidiu com o processo de descolonização em meados do século passado. E essas tensões vêm crescendo.

Com base numa política racista, ultranacionalista e anti-imigração, a extrema-direita francesa fez substanciais avanços eleitorais desde a década de 1980, e hoje a Frente Nacional, talvez o partido mais importante dessa nova e terceira onda de extrema-direita, lidera agora as pesquisas de intenção de voto para presidente, algo inédito. Dentro de tal contexto, somado à recessão econômica, desemprego e redução das perspectivas de vida, o atentado ao Charlie Hebdo é como um fósforo jogado sobre um barril de pólvora.

É com isso que temos de nos preocupar, e não com a liberdade de expressão. Justamente porque focar na liberdade de expressão, como se fosse um exclusivo valor ocidental ameaçado, joga água no moinho da extrema-direita, cujo discurso racista reveste-se hoje em dia de um diferencialismo cultural, segundo o qual as culturas são incompatíveis em função de seus respectivos valores, de modo que para serem preservadas elas devem se isolar.

O Islã seria, nesta visão, incompatível com o Ocidente, entre outras coisas por causa do valor que este dá à liberdade de expressão. Proteger a liberdade de expressão, portanto, implica apartar os islâmicos. Eis como uma preocupação legítima, de esquerda, progressista, dá margem, assim, para que ela seja ressignificada pela direita. E é ela uma ameaça real na Europa de hoje, infinitamente maior do que fanáticos terroristas.

Gabriel Vieira Bordin é cientista social.

Velhas e novas ameaças do neoliberalismo aos direitos trabalhistas.

1. Os direitos trabalhistas sob vigilância

Muitos olhares desconfiados de parte do setor econômico foram voltados para o Supremo Tribunal Federal depois que algumas decisões progressistas foram tomadas no âmbito daquela Casa a respeito do direito de greve no serviço público, notadamente no que se refere à impossibilidade do corte de ponto e à consequente preservação do salário durante a greve (vide Reclamações ns. 11.536; 11.847; 16.535 e Processo Eletrônico DJe-177).

A repercussão dessas decisões demonstra o quanto as questões trabalhistas se mantêm na centralidade das preocupações sociais, políticas e econômicas e como ainda é forte a resistência à afirmação de direitos trabalhistas na realidade brasileira, sobretudo no contexto neoliberal instaurado a partir da década de 90, cujo propósito foi, precisamente, reduzir, ou até eliminar, a proteção jurídica dos trabalhadores.

No Brasil, que conviveu com a escravidão em quase quatrocentos anos de uma história de 500 anos e que ainda convive com estruturas culturais escravistas, o advento dos direitos trabalhistas foi marcado por muita resistência do ainda restrito setor industrial. Depois de instituídos, esses direitos têm sido alvo de constantes ataques desferidos por esse mesmo setor – que só cresceu desde então, vale frisar – com os mais variados adjetivos e estigmas: no começo a legislação trabalhista seria “inoportuna”. Na sequência foi chamada de “fascista”, “paternalista”, “intervencionista”, “retrógrada”... Presentemente, vive sob o fogo das retóricas da “cubanização” e do “bolivarianismo”.

Cumpre compreender que esse modo de refutar a posição do Estado e de suas instituições frente às questões trabalhistas põe em grave risco o projeto constitucional, que está baseado na essência do valor social do trabalho e dos direitos sociais. Quando a retórica do “paternalismo” ganha força os direitos sociais tendem a perder eficácia, não só do ponto de vista da construção teórica, mas, sobretudo, no aspecto da sua concretização, porque a efetividade de muitos desses direitos depende da implementação de políticas públicas que intervenham diretamente nas relações socioeconômicas, sendo que no que se refere especificamente aos direitos trabalhistas é inegável a necessidade de um Estado que não apenas proclame esses direitos, mas que também garanta a sua aplicabilidade com serviços de fiscalização, impondo limites aos interesses meramente econômicos, notadamente do grande capital.

Quando esse projeto constitucional, que se traduz pela ideia de uma democracia pautada pelo Direito Social, é apelidado de “paternalista” – seja lá o que queira dizer com isso, afinal os direitos liberais clássicos, propriedade e contrato, não existem sem a força coercitiva do Estado tanto para garantir a eficácia dos tratos negociais quanto para impedir a rebeldia dos excluídos do “sagrado” direito de propriedade, ou seja, sem um “paternalismo” em favor da classe dominante – corre-se o risco dos direitos trabalhistas virarem fumaça. Claro que não há nisso muita novidade, pois, como já advertia Marx, mais cedo ou mais tarde as coisas se revelam e tudo que era sólido se desmancha no ar...

É, por isso, bastante oportuno verificar o quanto esses ataques ideológicos, que já se expressaram, no início da era neoliberal, em fórmulas como “modernidade” e “globalização”, visam mascarar a realidade da sociedade de classes, trazendo consigo, no âmbito específico das relações de trabalho, para essa mesma finalidade, noções como as de “parceiros sociais” e de “colaboradores”, e que hoje, em época nem tão distinta assim, se valem de outras fórmulas como a do “bolivarianismo”, tudo para minar a eficácia dos direitos trabalhistas, sendo que, presentemente, o risco é ainda maior na medida em que já não se fala mais eufemisticamente em flexibilização, e sim de retirada, pura e simples, de direitos.

Claro que nada disso se manifesta de forma clara e mesmo a existência de um projeto neste sentido será negada por todas as formas.

Cumpre analisar, com cuidado metodológico, portanto, o que vem ocorrendo nas relações de trabalho desde a década de 90, pois permitirá perceber a continuidade de um projeto que visa minar a força dos direitos sociais e trabalhistas, para a satisfação de interesses estritamente econômicos, sem apoio em qualquer projeto de sociedade, ou seja, apenas para favorecimento do capital que atua em escala mundial.

2. Ataques aos direitos trabalhistas na década de 90

Na década de 90, os direitos trabalhistas foram alvo de diversos ataques, alguns vindos diretamente do Executivo.

As reformas legislativas encontravam, no entanto, três obstáculos: a Constituição de 1988, que conduziu ao Capítulo dos Direitos Fundamentais as conquistas trabalhistas, inscritas no art. 7º., acompanhado da ampliação do direito de greve no art. 9º.; uma doutrina jurídica trabalhista resistente à derrocada de direitos, inspirada nos princípios do Direito do Trabalho e na própria instrumentalidade constitucional; e a Justiça do Trabalho, impulsionada também pela atuação de uma combativa advocacia trabalhista e pelo ativismo do Ministério Público do Trabalho, o qual ganhou bastante relevo após a Carta de 88.

3. A Reforma do Judiciário – ditada pelo Banco Mundial

Corria em paralelo, como forma de completar a obra neoliberal, um projeto de Reforma do Judiciário, iniciado, de fato, em 1994, e que previa nada mais, nada menos, que o fim da Justiça do Trabalho.

A Reforma do Judiciário se insere no contexto de um projeto internacional, vez que o neoliberalismo é uma forma global de impulsionar o capitalismo. O propósito da Reforma era o de impedir que o Direito, os juristas e os juízes constituíssem empecilhos à imposição da lógica de mercado.

Essa, ademais, não é mera interpretação individual da história. Está consignada, com todas as letras, no Documento Técnico n. 319, do Banco Mundial: “O Setor Judiciário na América Latina e no Caribe - Elementos para Reforma”, elaborado por Maria Dakolias, denominada “especialista no Setor Judiciário da Divisão do Setor Privado e Público de Modernização” (tradução de Sandro Eduardo Sardá, publicado em junho de 1996).

Ainda que no prefácio do Documento, elaborado por Sri Ram Aiyer, Diretor do Departamento Técnico para América Latina e Região do Caribe, haja a advertência de que “As interpretações e conclusões expressadas neste documento são de inteira responsabilidade dos autores e não devem de nenhuma forma serem atribuídas ao Banco Mundial, as suas organizações afiliadas ou aos membros de seu quadro de  Diretores Executivos ou aos países que eles representam. O Banco Mundial não garante a exatidão dos dados incluídos nesta publicação e não se responsabiliza de nenhuma forma pelas consequências de seu uso”, é mais que evidente que a sua publicação representa uma forma de influenciar as políticas internas dos diversos países, sobretudo aqueles considerados “em desenvolvimento”, até porque o próprio prefaciador se revela quando diz ao final: “Esperamos que o presente trabalho auxilie governos, pesquisadores, meio jurídico e o staff do Banco Mundial no desenvolvimento de futuros programas de reforma do judiciário”.

4. Novos ataques aos direitos trabalhistas no início dos anos 2000

Na década seguinte, a saga persiste com o advento da Lei n. 10.101/00, que regulou a participação nos lucros e nos resultados, recusando a natureza salarial do montante pago a tal título e prevendo a instituição de mediação ou de arbitragem de ofertas finais para a solução das controvérsias decorrentes da aplicação da lei, de modo a dar impulso ao projeto já iniciado, em 12 de janeiro de 2010, com a edição das Leis ns. 9.957/00 (sumaríssimo) e 9.958/00 (comissões de conciliação prévia), no sentido da integração de modos extrajudiciais de solução de conflitos às relações de trabalho, contribuindo, assim, para o esvaziamento da participação da Justiça do Trabalho. Na sequência, adveio a Lei n. 10.243/01, que, alterando o art. 458, da CLT, afastou a natureza salarial de diversas parcelas recebidas pelo trabalhador em contraprestação ao trabalho prestado.

No apagar das luzes do governo FHC, mais precisamente no dia 05/10/01, foi enviado, pelo próprio Executivo, ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.483, que alterava o artigo 618 da CLT, visando a institucionalizar o negociado sobre o legislado. O projeto entrou com regime de urgência e tramitou a passos largos, tendo sido levado a plenária no dia 26/11/01 e posto em discussão nos dias 27 e 28/11/01, até que, em 04/12/01, foi aprovado e enviado, no dia 6 de dezembro, ao Senado Federal.

Em março de 2002, o projeto deveria ter sido votado, mas negociações para a aprovação da CPMF fizeram com que o regime de urgência fosse cancelado e depois novos ajustes e a proximidade com a eleição mantiveram o projeto sem tramitação.

O ano de 2002 acabou sendo um marco da desaceleração desse processo, o que pode ser creditado, por certo, ao avanço da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, que deu força para os atos de resistência à derrocada de direitos, especialmente no âmbito acadêmico, com reflexos na Justiça do Trabalho.

Do ponto de vista legislativo, no entanto, ainda que com menor intensidade, em 2003 mantém-se a lógica anterior.

O Ministério do Trabalho inaugurou, em fevereiro de 2004, um movimento de “faxina” da CLT, como se a CLT contivesse disposições que seriam autênticos lixos. Criou-se um Conselho responsável por colocar em discussão a legislação social, o que, por si, permitiu que a legislação trabalhista fosse, mais uma vez, alvo de muitos ataques. Pautou-se uma reforma sindical, que, partindo do pressuposto de que a reforma fortaleceria os sindicatos, retomava a ideia do negociado sobre o legislado.

No mesmo ano de 2004, após a edição da Emenda Constitucional n. 41/03, que aumentou o tempo para a aposentadoria, substituindo o requisito do tempo de serviço para tempo de contribuição, o governo federal utilizou todas as suas armas para influenciar decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade de taxação dos inativos, o que se concretizou, em 18 de agosto de 2004, no julgamento das ADIs 3105 e 3128, prevalecendo, por 7 a 4, o voto do Min. Cezar Peluso.

Cumpre relembrar que a EC 41 (que trazia também a implementação imediata do teto remuneratório criado pela EC 19/98 e a implementação da contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos) estava inserida no contexto de uma Reforma do Estado iniciada em 1998, com a EC n. 19/1998, seguida da EC 20/1998 (esta com foco na Previdência). A Reforma do Estado buscava atrair para os entes administrativos a lógica de mercado. A EC 19/98 encampou expressamente o princípio da eficiência no caput do art. 37 e admitiu a possibilidade de servidores estáveis perderem o cargo por insuficiência de desempenho e por excesso de gastos da Administração Pública, consolidando a ideia de subsidiariedade do Estado, que foi iniciada em 1995 com a criação do MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Na ocasião, o então Ministro Bresser Pereira criou uma cartilha neoliberal de enxugamento da Administração Pública, da qual adveio a intensa – e inconstitucional – utilização da terceirização no serviço público.

Ainda na linha do resgate histórico da EC 41, vale lembrar que foi nesse período que se deu impulso pesado para as terceirizações, principalmente com a criação do Ministério da Administração e da Reforma do Aparelho do Estado, embora as Leis 8.031/90 e 9.491/97 já tivessem se referido a respeito. A pressão pela contenção dos gastos com pessoal imposta pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000) também estimulou a terceirização, pois ainda que equiparasse terceirização de mão de obra a gastos com pessoal, a terceirização por meio da contratação de serviços sempre foi deixada de fora do limite orçamentário pelos Tribunais de Contas.

Voltando aos anos 2000, em 2005, adveio um dos maiores baques dos direitos trabalhistas, a Lei n. 11.101, da recuperação judicial, que retirou do crédito trabalhista (superior a 150 salários mínimos) o caráter privilegiado com relação a outros créditos, buscou eliminar a sucessão trabalhista e tem servido até hoje como forma de institucionalização do “calote” trabalhista.

Em março de 2007, chegou a ser aprovado no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLC n. 7.272/05), que criou a denominada “Super Receita”. No bojo dessa lei se inseriu, pela Emenda aditiva (n. 3), de autoria do Senador Ney Suassuna, apelidada de Emenda 3, a retirada do poder de fiscalização dos fiscais do trabalho.

Jorge Luiz Souto Maior é professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.

MINISTÉRIO AO GOSTO DO CAPITAL, PACOTE CONTRA OS TRABALHADORES, PACTO SOCIAL PARA TENTAR FREAR A LUTA DE CLASSES

NOSSA TAREFA É AMPLIAR A LUTA PARA ENFRENTAR OS ATAQUES CONTRA A CLASSE TRABALHADORA E AVANÇAR

Assim 2014 se encerra e 2015 se inicia

Na última semana de 2014, o governo federal do PT coloca em movimento medidas para aprofundar seu compromisso em ser um governo capaz de gerenciar os interesses da burguesia.

Após o anúncio de seu novo Ministério, que para além de comtemplar o fisiologismo partidário, demonstra que nas pastas mais importantes estarão lá os fiéis representantes da burguesia, como no Ministério da Fazenda, Indústria e Comércio, Agricultura, Planejamento, num gesto claro de compromisso de administrar a máquina do Estado para garantir as necessidades do Capital.

No dia 29 de dezembro o governo anunciou cortes em direitos garantidos que não são fruto de concessão de governos e patrões, mas resultado de anos de luta do conjunto de nossa classe.

Vejam só, algumas das principais medidas do pacote do governo contra os trabalhadores:

- O abono salarial (PIS) ao qual todos os trabalhadores tinham direito desde que tivessem no ano trinta dias de trabalho , agora só será pago para quem trabalhar por seis meses ininterruptos durante o ano em curso.

- O seguro desemprego que era pago a todo o trabalhador que tivesse trabalhado por 6 meses durante o ano, agora será pago só para aqueles que tenham trabalhado por 18 meses ininterruptos.

- O pagamento pelo INSS aos trabalhadores que tiverem que se afastar do trabalho por motivo de doença, que antes era a partir do 16° dia de afastamento, agora será pago pela Previdência só depois 30 dias de afastamento e mais: as empresas vão poder realizar as perícias médicas.

Ou seja, se antes já havia uma promiscuidade instalada nas perícias, onde vários médicos que atuam como peritos dos INSS, também prestam serviços paras empresas privadas, o que resultava nos casos de acidente e doenças provocadas pelo trabalho, o não reconhecimento do nexo causal entre a doença e/ou acidente e o trabalho, agora o governo abre a porteira para dar andamento ao que se iniciou nos governos do PSDB: os patrões terão mais ferramentas para se “livrar” da força de trabalho que necessitar de afastamento, ou seja, demissões de mais trabalhadores que em grande parte tem seu adoecimento provocado pelas condições de trabalho.

E tem mais: antes o pagamento era feito a partir da maior contribuição ao INSS, agora será reduzido à média de contribuições dos últimos 12 meses.

- Na pensão por morte, o governo agora se coloca como “juiz das relações”: a medida imposta reconhece como casamento e/ou união estável o relacionamento a partir de dois anos e o pagamento será feito a partir de no mínimo dois anos de contribuição.

O que se fala, demonstra o conteúdo das medidas adotadas, vejam as palavras do Ministro da Casa Civil para justificar o pacote, colocando como exemplo a alteração do pagamento do abono salarial:

“O benefício trata de forma igual quem trabalha 30 dias em um ano e quem trabalha o ano inteiro. Bastou trabalhar 30 dias, tem direito ao programa. Vai ser pago proporcionalmente aos meses que ele trabalhou, como é o 13° salário”, explica o ministro-chefe da Casa Civil, Aloízio Mercadante

Assim o Ministro da Casa Civil, aceita as demissões, um dos instrumentos do Capital para manter e ampliar seus lucros e tenta ocultar essa ferramenta tão utilizada pelos patrões. Chega ao ponto de tentar transformar esse parco direito, como privilégio para quem recebê-lo. O Ministro ao defender a medida, protege os patrões e penaliza o trabalhador, como se fosse dele a “culpa” de não trabalhar o ano inteiro e mais: diz que estão “ buscando um alinhamento aos padrões internacionais”, leia-se: reduzir direitos para tentar cobrir o rombo provocado ao assumir a dívida privada do Capital, como dívida pública, a receita produzida pelos EUA e também aplicada pela Europa. Para os patrões apenas suspensão das benesses de isenção e diminuição do IPI.

Chamam de “excesso” direitos básicos e além de tentar dividir a classe, ao impor as novas regras para os que serão empregados a partir de agora, querem transformar em força de trabalho “privilegiada” quem hoje está empregado e assim potencializam a rotatividade, instrumento tão utilizado pelos patrões para diminuir o preço da força de trabalho.

Após pouco mais de 72 horas do pacote, Dilma em seu discurso de posse ainda fala em respeito aos direitos sociais e com a mesma marca iniciada desde a chegada do governo do PT à Presidência da República, cercado de muita ideologia diz que defende: “... o Brasil que trabalha e o Brasil que produz...”, tentando assim ocultar que os mesmos que trabalham, são os que produzem, ou seja, os trabalhadores e não aqueles que se beneficiam do trabalho, os capitalistas sejam eles industriais na cidade do campo, sejam eles os parasitas do sistema financeiro.

O governo comemora a “economia” de R$ 18 bilhões de seu pacote sustentado à base da retirada de direitos, fala de um déficit da Previdência, escondendo os reais e grandes sonegadores: as empresas, sem distinção de ramo econômico.

Para tentar dar sustentação ao seu projeto, mais uma rodada de pacto social : Na semana anterior ao anúncio do pacote do governo, o PT coloca Lula para convocar diversos setores do movimento sindical e popular para uma “agenda de mobilização”. Escondidos na plataforma da reforma politica, o governo federal sem ainda alterar a legislação trabalhista, já ataca direitos básicos, através de medidas tomadas pelo executivo com as mudanças no pagamento do abono salarial, seguro-desemprego e diretos previdenciários.

A plataforma do governo sobre a reforma política tenta ocultar no pronunciamento de Dilma na posse ao Planalto o seu real conteúdo: quando se utiliza de reivindicações básicas dos trabalhadores como “Nenhum Direito a Menos” tenta ocultar o ataque feito a direitos básicos, através do pacote anunciado antes da posse que demonstra que as principais medidas são de ataque aos trabalhadores.

A unidade necessária se faz para defender os direitos da classe trabalhadora e não para se submeter:  as organizações que se reuniram uma semana antes da posse, como movimentos MTST, MST, Conlutas e Intersindical (sendo que essa não é a legítima Intersindical) Consulta Popular, centrais sindicais como CUT e outras e Partidos como, PT, PCdoB, Psol, PSTU, se utiliza da unidade como instrumento de retórica, pois no referido encontro não há nenhuma plataforma concreta de luta para enfrentar os ataques impostos contra os trabalhadores, apenas uma vaga e superficial bandeira por “ reformas populares”.

A Intersindical - Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora não participou dessa reunião onde a unidade não se concretizou em ações para enfrentar os ataques do Capital e de seus governos:  Para nós a unidade se constrói em ações concretas que tenham como objetivo enfrentar os ataques do Capital que se expressam diretamente no processo de trabalho seja ele estabelecido em contratos formais ou não, seja na retirada de direitos através da imposição de pacotes como esse do governo federal, seja através do pacto com várias representações formais que se expressam nas centrais sindicais, como a CUT, CTB, UGT, Nova Central entre outras que apresentaram projeto de lei que consente a redução de salários em até 30% quando o governo assim avaliar que o Capital se encontra em crise.

Não vão se utilizar de nossas bandeiras e de nossas reivindicações para tentar transformá-las em seu contrário: seguimos firmes em luta para garantir a manutenção e ampliação dos direitos de nossa classe, não estaremos nos fóruns que falam de unidade, mas não a concretizam em luta contra os ataques do Capital e seus governos.

Em cada local de trabalho, vamos ampliar a luta por nenhum direito a menos e para avançar rumo a novas conquistas.

Não ao pacote do governo que ataca os direitos dos trabalhadores, em luta por mais salários, direitos, empregos, redução da jornada sem redução salarial.

Unidade se faz na luta concreta para enfrentar os ataques do Capital e de seus governos contra a classe trabalhadora

 

‘É impostura ideológica enxergar diferenças substantivas de projeto entre PT e PSDB'

Mais de uma semana após o segundo turno, a poeira eleitoral começa a abaixar, mas os ânimos populares e o contexto político permanecem acirrados, neste que foi um dos mais tensos, disputados e divididos processos dos últimos anos. De volta à realidade, polêmicas e crises em diversas frentes são a nova tônica. Água, economia, mídia, reforma política e muitos outros assuntos seguem, inapelavelmente, na ordem do dia. Para tratar de um desses relevantes assuntos, o Correio da Cidadania entrevistou o economista Reinaldo Gonçalves, que foi implacável em sua análise das proposições econômicas dos candidatos.

“O debate refletiu exatamente a natureza dos candidatos, dos partidos, das alianças, dos programas e dos projetos: mediocridade histérica, tanto da Dilma quanto do Aécio. Fizeram pequenas referências a programas específicos, mas nenhum aprofundamento sobre questões mais fundamentais, como o modelo de desenvolvimento ou questões estruturais”, resumiu.

Dentro de tal contexto, Reinaldo ressalta que todas as discussões a respeito da política econômica do período vindouro encontram-se em franca defasagem ante o contexto mundial. “A independência do BC e as metas de inflação tiram a autonomia política, trazem o risco de inconsistências da macroeconomia e, aqui está o problema central, são uma proposta completamente atrasada e ineficaz do próprio ponto de vista técnico”.

Para o autor do livro Desenvolvimento às Avessas, analisar a dicotomia entre petistas e tucanos sob a ideia de que a vitória de Aécio “aprofundaria” o neoliberalismo brasileiro é uma “impostura ideológica”. “O projeto é exatamente o mesmo, que está levando ao apodrecimento do Brasil. O Brasil apodrece do ponto de vista econômico, social, político, institucional e ético. Por trás disso, está o modelo econômico que os governos vêm mantendo”, disparou.

A entrevista completa com Reinaldo Gonçalves pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como você viu a abordagem da economia do país nos debates eleitorais dos candidatos à presidência da República, especialmente aquele travado no segundo turno entre Dilma e Aécio?

Reinaldo Gonçalves: O debate refletiu exatamente a natureza dos candidatos, dos partidos, das alianças, dos programas e dos projetos: mediocridade histérica, tanto da Dilma quanto do Aécio. Fizeram pequenas referências a programas específicos, mas nenhum aprofundamento sobre assuntos mais fundamentais, como o modelo de desenvolvimento ou questões estruturais. Nada disso, nada de programa de governo. O debate refletiu a mediocridade entre todos os elementos políticos dos dois candidatos, que foram muito pobres.

Correio da Cidadania: O que diria sobre a dimensão que tomou o tema da independência do Banco Central? Qual o sentido da polêmica que se instaurou em torno ao tema e o que significaria, na prática, um Banco Central (BC) independente?

Reinaldo Gonçalves: Na prática, significa o BC ficar focado única e exclusivamente no combate à inflação. Essa é a ideia de autonomia do Banco Central. Claro que em países onde o BC é autônomo, como nos EUA, podem existir outros regimes monetários, deixando-se de focar somente no combate ou aumento da inflação. O foco pode ser dado na área monetária, na questão do emprego, do balanço de pagamentos etc.

Portanto, essa discussão no Brasil é atrasada. Desde 2008, o percentual de países que adotam o regime de metas de inflação, associado aos fundamentos do nosso Banco Central, tem caído: desceu de 22% para 17% dos países. Com a crise, os países procuram gerar graus de autonomia política. Assim, não dá pra amarrar a política monetária somente no combate à inflação, enquanto há problemas como juros altos, balanço de pagamentos e falta de crescimento.

Por isso que tal debate é atrasado no país, assim como é atrasado nosso debate sobre a política, inclusive a econômica. No Brasil, não faz sentido, principalmente por conta da forte estabilização macroeconômica, com baixos crescimento e investimentos, deficiências crônicas seríssimas e dificuldade com o balanço de pagamentos, se dar o luxo de pegar uma política tão importante como a monetária e ancorá-la somente no combate à inflação. Um país como o Brasil, por ser mais frágil, vulnerável e instável, precisa de mais autonomia política. Não faz sentido ancorar nenhuma política a um objetivo particular, porque condiciona toda a política macroeconômica.

A independência do BC e as metas de inflação tiram a autonomia política, trazem o risco de inconsistências da macroeconomia e, aqui está o problema central, são uma proposta completamente atrasada e ineficaz do próprio ponto de vista técnico.

Correio da Cidadania: Como definiria, nesse sentido, a condução da economia, bem como a gestão do Banco Central, sob o governo Dilma até o presente momento (inclusive à luz das anteriores gestões de Lula e também de FHC)?

Reinaldo Gonçalves: Medíocre. A macroeconomia brasileira nos anos de Dilma foi de grande mediocridade, tanto levando em conta os padrões históricos brasileiros como os atuais padrões internacionais. Por exemplo, Dilma encerra o mandato com crescimento médio do PIB de 1,6%. O mesmo número vale para o aumento real da renda anual. A média histórica brasileira é 4,5%. A economia mundial durante os últimos quatros anos está crescendo à ordem de 3,6%, mais que o dobro do Brasil.

Mais de 70% dos países têm um crescimento macroeconômico superior ao do Brasil. Para se ter ideia, em 30 mandatos presidenciais, a Dilma é o terceiro pior neste quesito, à frente somente de Collor e Venceslau Brás. Uma tragédia total.

Há várias explicações. Uma delas é o déficit de governança, ou seja, a incompetência do governo Dilma na gestão econômica. Falo de um resultado conclusivo, que não está aberto a controvérsias. Basta olhar as finanças públicas, o crescimento, as taxas de investimentos... A única exceção, que confirma a regra, é a questão do emprego, que não se explica por méritos políticos do atual governo, mas por razões de mudanças demográficas no país e efeitos colaterais, e inesperados, da política social.

Correio da Cidadania: O que sinalizam as medidas tomadas já nesta semana, como a alta da Taxa de Juros (a Selic), ao lado da sinalização de que o novo ministro da Fazenda será buscado no mercado financeiro? Como deve seguir o governo Dilma?

Reinaldo Gonçalves: Isso mostra que o governo Dilma não tem um projeto de Brasil. Ela fez o mesmo de Lula: seguir o Modelo Liberal-Periférico, iniciado por FHC e que já afundou. Junta o pior do liberalismo, deixa suas coisas boas de fora, e traz tudo que há de ruim nas periferias, inclusive o sistema político patrimonialista, corrupto, com sérios problemas de governança e resultados cada vez mais medíocres.

É o modelo que vai continuar, em uma trajetória de maus resultados e instabilidade na economia, o que certamente repercutirá na questão social, política e até institucional. Vale lembrar que há pouco tempo ninguém imaginava aqueles protestos populares, até generalizantes, contra os governos do Brasil inteiro.

Correio da Cidadania: A campanha petista acusou mídia, grandes empresários e mercado financeiro de fazerem terrorismo contra a candidatura Dilma - de fato, notou-se um movimento de alta na Bolsa de Valores quando os resultados das pesquisas eleitorais eram mais desfavoráveis à candidata e vice-versa. O que explica este fato, visto que as gestões petistas, Dilma entre elas, caminharam com altos lucros bancários e não inverteram a lógica dominante no modelo econômico implantado por FHC?

Reinaldo Gonçalves: Pura farsa. Desde a era Lula, o PT gira à esquerda na época das eleições. Quando vira governo, vai para a direita, como camaleão ambulante. A regra é essa: no momento da eleição, faz um giro para a esquerda; depois, um giro para a direita. Mas é uma farsa recorrente empreendida pelos dirigentes, que, nesse sentido, se apresentam no duelo eleitoral iludindo a maior parte do povo. E até a própria esquerda brasileira, por ingenuidade, inépcia ou pusilanimidade, acaba, na campanha, aderindo a essas candidaturas ecléticas do PT.

A dominação bancária aumentou com os governos Lula e Dilma. A taxa de lucros continua de 40% a 50% maior do que nas outras grandes empresas do país. Os ativos dos bancos continuam crescendo... É uma dominação muito presente. “Tudo bem” o discurso do governo na campanha eleitoral - é uma questão de farsa, de malandragem e má fé dos dirigentes de campanha. O curioso é ver certos setores acreditando nisso. É lamentável, e continua cada vez mais forte.

Correio da Cidadania: Portanto, é quase impossível comungar da ideia do ‘mal menor' defendida pelo campo de esquerda mais progressista e diversos movimentos sociais, que apoiaram o voto crítico em Dilma sob o argumento de que um governo do PSDB aprofundaria ainda mais o neoliberalismo?

Reinaldo Gonçalves: Essa é uma bobagem muito grande. Quem aprofundou o Modelo Liberal-Periférico no Brasil foram os governos Lula e Dilma. Quando o governo faz todas as concessões, chama os chineses para participarem do pré-sal, rodovias, infraestrutura, portos, aeroportos, vemos o aprofundando de tal modelo. É farsa, má fé e uma impostura ideológica acreditar que há uma disputa de projetos entre um e outro, ou uma disputa ideológica propriamente.

O projeto de governo em andamento é o mesmo que vem desde a era FHC. As diferenças estão apenas na margem. Um pouco mais de política social aqui, acolá, com favorecimento de grupos econômicos de alguns setores dominantes, mas os fundamentos continuam iguais. Os setores que pautam os governos são os mesmos, as empreiteiras, o agronegócio, a turma da mineração...

Não mudou absolutamente nada. Lula e Dilma vêm implementando o Modelo Liberal-Periférico sob a égide dos mesmos setores. Não tem nenhuma mudança estrutural no país. As notícias da semana passada já demonstram isso: nenhuma mudança estrutural, apenas o aprofundamento deste modelo.

Portanto, é uma impostura ideológica enxergar diferenças substantivas de projetos entre PT e PSDB. O projeto é exatamente o mesmo, que está levando ao apodrecimento do Brasil. O Brasil apodrece do ponto de vista econômico, social, político, institucional e ético. Por trás disso, está o modelo econômico que os governos vêm mantendo.

A mensagem é essa: o Brasil apodrece com o Modelo Liberal-Periférico, produzido pelo governo de FHC e aprofundado por Lula e Dilma. A trajetória é medíocre, instável e de altos riscos de crise social, política e institucional. Os responsáveis estão aí, quem faz sua escolha traça o seu caminho.

‘Há muito pouco que se esperar do próximo governo'

Enquanto o país vai se recompondo da febre eleitoral que transformou a disputa entre Dilma e Aécio numa rinha na qual os grandes e urgentes temas nacionais brilharam pela ausência, começa-se a tecer análises do que vem pela frente. Enquanto os movimentos progressistas alimentam a esperança de um mandato mais à esquerda de Dilma, o mercado e seus porta-vozes também já marcam suas posições e exigências.

“O resultado deste domingo foi muito marcante, a ponto de fazer necessário mobilizar todas as forças de esquerda para impedir a vitória de uma direita que dessa vez se apresentou de maneira muito mais explícita, com uma roupagem conservadora não apenas socialmente, mas também economicamente”, disse a historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense Virginia Fontes, em entrevista ao Correio.

Para ela, o clima não ajuda em nada a clarear o que está em jogo e quais as tendências da chamada “realpolitik”. Em sua visão, o fanatismo de ocasião, de lado a lado, “gerou uma mobilização de variadas forças de esquerda, o que obscurece o fato de que o governo anterior da Dilma não realizou políticas de esquerda e a expectativa, agora, é de que tampouco realize, de modo a atribuir maior protagonismo às forças populares”.

Apesar do pessimismo, que também se ancora na configuração de um congresso repleto de ranços conservadores, até extremados, Virginia pensa que o próximo período reserva campo aberto para diversas lutas, independentemente de uma maior unidade das forças e pautas à esquerda do debate público.

“Não vejo ambiente propício para as lutas. Acredito que os movimentos terão de retomar sua agenda de forma muito firme, exatamente por conta desse cenário bastante adverso. Se não o fizerem de maneira firme, correm risco de serem atropelados pelos movimentos de massa, que devem vir, apesar de não ser possível prever precisamente”, analisou.

A entrevista completa com Virginia Fontes pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Primeiramente, como você analisa a vitória de Dilma neste domingo, com a margem de votos mais estreita dos últimos tempos?

Virginia Fontes: O resultado deste domingo foi muito marcante, a ponto de fazer necessário mobilizar todas as forças de esquerda para impedir a vitória de uma direita que dessa vez se apresentou de maneira muito mais explícita, com uma roupagem conservadora não apenas socialmente, mas também economicamente. Tivemos o perfil de uma direita organizada de forma muito dura, homofóbica, com toda a característica de um anticomunismo primário, que grassou no Brasil há muito tempo, de forma peculiar.

Isso gerou uma mobilização de variadas forças de esquerda para barrá-la, o que obscurece o fato de que o governo anterior da Dilma não realizou políticas de esquerda. E a expectativa, agora, é de que tampouco as realize, de modo a atribuir maior protagonismo às forças populares.

Portanto, a conjuntura das eleições é muito incômoda, porque de alguma maneira obscurece para as grandes massas as condições reais nas quais se dão nossas lutas, além de esconder as possibilidades e exigências reais de organização que temos pela frente.

Faço uma constatação muito amarga do processo eleitoral, Inclusive, aqui no Rio, fiquei muito impressionada, pois até a última semana era como se nada acontecesse. Já na última semana, alguns bairros tiveram mobilização, mas ainda era como se nada acontecesse, apenas mais um fenômeno burocrático de ir votar.

É um resultado incômodo.

Correio da Cidadania: O que podemos esperar ainda do quarto mandato petista no Planalto, ao olhar para a nova configuração do Congresso e para a atual conjuntura econômica nacional e internacional?

Virginia Fontes: É uma análise para ser feita com calma. Em primeiro lugar, durante a campanha, praticamente todos os candidatos do que considero alas direita e esquerda do capital – uma coisa é ser socialista e se propor transformador, revolucionário, outra é orbitar em torno do capital, como o PT – admitiram que fariam ajustes, mais ou menos rápidos, mais ou menos intensos. Mas todos os candidatos sempre falaram em fazer o ajuste.

Foi uma discussão de cunho técnico e bastante despolitizada, uma vez que não se explicou como se fariam tais ajustes e o que significam. Mas quer dizer que pressões de grandes capitais – de origens diversas – exigem maiores ganhos, o que significa reter ou diminuir conquistas dos setores populares e dos trabalhadores. Esse compromisso estava claro em todos os quadrantes dos partidos que orbitam em torno do capital.

O Congresso ainda mais reacionário significa que a mobilização popular, que num governo supostamente de esquerda deveria ocorrer, não aconteceu. O terreno das eleições proporcionais, importantes por serem mais próximas da vida do eleitor, continua entregue aos grandes grupos controladores de grandes máquinas, aliados de proprietários de sistemas de comunicação de grande escala, e que demarcaram as posições de ingresso no Congresso.

Sobrou, apenas, algum espaço de manifestação nas eleições majoritárias, com alguma dose de inquietação social. Isso é muito grave. É sintoma do que houve nos últimos anos, isto é, um desengajamento das causas populares e da militância efetivamente socialista, comprometida com processos de transformação substantiva, resultando em um parlamento muito marcado pela direita. Ficou um espaço socialmente mais conservador, para além de economicamente – pois neste caso os dois grupos são conservadores. Porém, a diferença de agora é uma base mais homofóbica, visceralmente anticomunista, sem nenhuma tolerância e grosseiramente reacionária.

Desse ponto de vista, o que esperar do próximo governo, sendo que o anterior já se viu completamente aprisionado pelo jogo politiqueiro? Muito pouco. Para uma esquerda revolucionária, socialmente comprometida com transformações (em suma, anticapitalista), cada dia mais terão de se reorganizar forças populares e fechar uma pauta clara em comum, capaz de enfrentar o legislativo e o executivo.

Correio da Cidadania: Faz algum sentido os setores e partidos que se colocam à esquerda do PT, muitos dos quais apoiaram o voto crítico em Dilma no segundo turno, esperarem uma guinada à esquerda do partido e alguma possibilidade de parcerias políticas?

Virginia Fontes: Pessoalmente, não vejo muita possibilidade. É difícil explicar, mas o que acontece? Os processos eleitorais supõem o PT de esquerda, os outros de direita, e falsificam o jogo anterior, porque na verdade são esquerda e direita em torno do capital. Essa discussão não é explicitada. É como se apagassem o nervo pra discutir o epidérmico. Nesse processo, é como se reafirmássemos que a característica atual do PT é a sua característica ideal. Praticamente se reafirma que ser a esquerda do capital é o melhor papel do PT.

Dentro de tal ponto de vista, tenho muito pouca expectativa de que uma guinada ocorra. Seria muito bom, mas a expectativa, para mim, não existe. Os partidos que se mantêm na linha anticapitalista precisam definir um programa em comum. A ideia não é se unificarem, mas precisam de uma pauta de luta comum e clara. É o trabalho a ser feito e não é instantâneo.

Correio da Cidadania: Diante disso, como ficarão as pautas associadas aos movimentos populares e progressistas nesse próximo período?

Virginia Fontes: Tenho bastante expectativa nesse terreno, porque tais pautas não foram cumpridas pelos governos precedentes: reforma agrária; reforma educacional de fato, de base popular, com educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada; reforma universitária ampla, capaz de desprivatizar e desmercantilizar a vida; reforma e mobilidade urbanas...

Essas ideias estão muito vivas na população e nos movimentos sociais. Acredito que as lutas em torno de tais pautas serão retomadas, até porque são pautas absolutamente irrealizáveis no âmbito do capitalismo no mundo contemporâneo.

Eventualmente, essas lutas já foram superadas em alguns países, anos atrás, mas na atualidade vêm sendo crescentemente impossíveis de serem satisfeitas pela ordem dominante. Portanto, o que imagino, e espero, é que os movimentos retomem suas pautas de luta, contra a homofobia, o racismo, pelo transporte, educação, saúde, mobilidade, mesmo que enfrentem limitações provavelmente ainda maiores.

Já vínhamos assistindo o processo de privatização da saúde, da educação, uma sequência de processos de gestão privada de recursos públicos, que precisam dar lucro e, assim, prejudicam diretamente os setores populares. Suponho que os movimentos retomem suas pautas de luta e, de alguma maneira, como já faziam antes, atravessem o ritmo de setores da esquerda do capital que acham que tudo vai bem.

Correio da Cidadania: Acredita que se desenha um tempo propício para novas rebeliões populares, a exemplo das que vimos mais recentemente? Como isso se daria num ambiente institucional mais conservador?

Virginia Fontes: Não acho que está aberto um tempo mais propício para as lutas populares. Acho que serão tempos mais duros. Virão ajustes em favor do capital, que significam mais contrarreformas, redução de direitos sociais e públicos. O segundo ponto é que uma direita conservadora, econômica e socialmente, se reconstituiu nessas eleições, ao menos aparentemente, o que é um problema sério a ser enfrentado. É uma direita socialmente agressiva e com perfil de não dar nenhum espaço para nenhuma conquista sociopolítica.

Não vejo ambiente propício para as lutas. Acredito que os movimentos terão de retomar sua agenda de forma muito firme, exatamente por conta desse cenário bastante adverso. Se não o fizerem de maneira firme, correm risco de serem atropelados pelos movimentos de massa, que devem vir, apesar de não ser possível prever precisamente.

No entanto, como sabemos que as manifestações de 2013 se deram a partir de exigências mais evidentes e concretas da vida dos trabalhadores – transporte, habitação, saúde, educação, que são os temas mais candentes, incluindo a reação à violência estatal –, podemos imaginar que tais pautas estarão recolocadas de forma muito aguda. Mas não porque o ambiente esteja favorável.

Os “sem água” de São Paulo - na pele de Alckmin

A nordestina que assistia televisão começa a chorar quando vê o sofrimento de uma mulher paulistana da periferia, com a pia cheia de pratos, o vaso sanitário cheio de outras coisas, há dois dias sem tomar banho e sem saber como lidar com essa penúria de água.

Essa história ouvi na cidade de Canudos nesse sábado passado, aqui no sertão da Bahia, local simbólico da luta nordestina pela terra e pela água. Quem me contou foi o Pe. Alberto, pároco da cidade, durante a romaria de Canudos que acontece todos os anos.

Não queria estar na pele de Geraldo Alckmin quando essa eleição passar. Quando os “sem água” saírem às ruas, como fizeram em Cochabamba (Bolívia), em Rosário (Argentina) ou em tantas cidades nordestinas em outras épocas, a classe política vai conhecer o que é a fúria popular causada pela sede. Como se diz aqui pelo sertão, “a fome e a sede têm cara de herege”.

O sofrimento humano causado pela falta d'água se generaliza em todo o país. Primeiro como resultado de um processo histórico de degradação e maltrato para com nossos mananciais. Segundo pela incapacidade total de nossas autoridades que têm poder de decisão de ver o que acontece e tomar medidas preventivas contra o pior. Terceiro porque a questão eleitoral não permite o debate sério que a cidade de São Paulo e outras regiões do país – como o São Francisco - terão que ter ao menos para sobreviver, causando até piedade de uma senhora nordestina que sabe o que é passar uma vida labutando por um pouco de água. Hoje, no sertão de Canudos, ela está muito melhor que a paulistana.

O sofrimento humano deveria gerar solidariedade, não preconceitos e raivas. Prefiro a sensibilidade da nordestina de Canudos que todos os discursos feitos nessa eleição contra o Nordeste e seu povo. A voz das redes sociais, então, mesmo vindo de médicos, advogados, políticos, intelectuais etc., espelha o que há de pior no ser humano. A lágrima da nordestina, o que há de melhor no Nordeste e no povo brasileiro.

Mas, Alckmin que se proteja. Basta um palito de fósforo e essa água pega fogo.

Roberto Malvezzi (Gogó) possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe CPP/CPT do São Francisco.

Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos

Democraticamente, há três opções para o trabalhador brasileiro, e o eleitor de forma geral, no segundo turno da eleição presidencial. Uma delas é votar em Dilma Rousseff e no governo social liberal de petistas chapa branca, comunistas de logotipo e os seus aliados de direita e centro-direita. A outra opção é votar no neoliberal e tucano Aécio Neves, com ligações fortes no mercado financeiro, aliado da antiga e nova direita, que promete trazer de volta Armínio Fraga e os tempos de FHC.

Ou simplesmente não votar em nenhum dos dois: se abster ou votar nulo ou em branco.

Antigos e novos estalinistas, mas também aqueles que se intitulavam de trotskistas, antes radicais, mas agora cordatos e com bons empregos no Banco Central, chamam de esquerdistas os que se recusam a apoiar Dilma.

Esquecem, deliberadamente, que o então presidente Lula ficou oito anos dos seus dois governos atacando e ridicularizando a esquerda. Não lembram também que, no primeiro turno da eleição presidencial, 30% do eleitorado ou se absteve ou votou nulo ou em branco. De forma atrasada ou não, toda essa gente protestou contra o modelo político do toma lá dá cá, contra a farsa eleitoral, na qual banqueiros, empresários e empreiteiras financiam candidaturas, controlam a eleição e mandam nos governos, antes mesmo do resultado do pleito.

Essa gente não quer admitir que o modelo social liberal de Dilma/Lula está fazendo água. E por isso também o fortalecimento da direita.

Uns dizem que a economista Maria da Conceição Tavares tem razão e que chegamos ao  “fim do desenvolvimentismo e início da democracia social”. E como se tudo estivesse igual dão saudações petistas. De boca cheia.

A crise capitalista internacional está chegando para ficar, a situação econômica se agrava e vai se acentuar a pré-barbárie, com continuidade da matança de pobres e negros nas periferias das cidades.

Ainda não há desemprego no Brasil, mas a taxa de crescimento de novos postos de trabalho é baixa e não dá conta de incorporar milhões de pessoas que chegam ao mercado anualmente.

Sabemos que a política do atual governo federal petista fortalece o capitalismo, o imperialismo, é nociva aos interesses nacionais, à luta pelo socialismo e à conquista do poder operário e popular.

Vença Dilma ou Aécio, virão tempos duros, com medidas ortodoxas, ajuste fiscal e radicalização das políticas de direita, a exemplo da homofobia, manutenção da atual lei do aborto, preconceito, negação das bandeiras feministas, nada de reforma agrária e a não descriminalização da maconha.

Para recompor taxas de lucro, o capitalismo continuará vindo para cima dos trabalhadores, com arrocho salarial e desemprego, acompanhado do aumento da exploração no trabalho. O sonho da casa própria quase inexiste, tornando mais presente o pesadelo dos despejos e reintegrações de posse.

Do total do orçamento previsto para 2015, de R$ 2,86 trilhões, 47,55%, ou R$ 1,36 trilhões, serão para pagamento de juros, amortizações da dívida pública, e vão para os bolsos dos banqueiros.

Enquanto isso, o previsto para o bolsa família é de R$ 27,7 bilhões em 2015, equivalente a 2% do que será gasto com a farra dos financistas nacionais e internacionais.

Das suas três refeições fartas, os capitalistas deixam aos trabalhadores a casca de pão, no chão.

Como disse Millor, a credibilidade do país é inversamente proporcional aos juros que os banqueiros internacionais lhe cobram.

Há muita gente séria entre os que apoiam Dilma (e mesmo entre os que preferem Aécio Neves).

Mas uns fazem negócio da China, outros fraudam a história, se lambuzam com indenizações do “bolsa ditadura”, dão tombo na praça, usam métodos policiais  e  gostam mesmo é de grana.

Partidários de Dilma usam o argumento rebaixado de que voto nulo é defender o quanto pior melhor, e querem apoio na menos pior. Ou seja, na candidata Dilma.

Destacam a adesão de Roberto Amaral ao governo petista e que ele passou a falar que Marina Silva traiu o PSB. Mas quem traiu o partido foi a direção oportunista do partido, ao oferecer a sua barriga de aluguel para gerar a candidatura de Marina. Desde o início estava muito claro, para quem nunca se enganou, que ela continua em busca de um projeto pessoal de poder. Não por acaso está apoiando Aécio Neves.

A menos de uma semana da eleição, a disputa é apenas baixaria burguesa, elogios do passado tornam-se críticas, uma e outro se apresentam como mais capacitados para gerenciar o sistema e a exploração de mulheres e homens. O Superior Tribunal Eleitoral (TSE) tenta coibir os excessos, mas para legitimar a farsa das eleições.

De qualquer forma, o resultado do pleito parece incerto. Com Dilma ou Aécio vem pau. A esquerda revolucionária está enfraquecida, precisa deixar de falar para si mesmo, ampliar sua base social e repetir à exaustão que o socialismo de Karl Marx e Frederick Engels - além de um mundo novo, muito mais humano e sem roubalheira - é superior ao capitalismo, necessitando demonstrar ser mais eficiente econômica e tecnologicamente. E rever criticamente o período de autoritarismo e burocratismo, mas também o doutrinarismo e esquerdismo.

Só assim será possível conquistar milhões de mulheres e homens trabalhadores para a empreita contra o capitalismo. Precisamos nos preparar para lutar peleja dura, prolongada e gestar a alternativa proletária ao sistema capitalista, com o Partido da Classe Operária também liderando o embate.

E como dizia o brilhante Millor: Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos.

Voto nulo é alternativa democrática a dilema falso

As espúrias alianças do PT com personalidades e partidos de direita não podem ser separadas dos sucessivos escândalos dos governos Lula e Dilma. Por que, então, nos comprometermos com as posições, alianças e métodos desses governos?

A alternativa democrática do voto nulo no segundo turno deve ser examinada com seriedade e sem temor.

Não identifico diferenças substanciais entre as duas candidaturas. Não há, em ambas, alianças com o grande capital e com a direita conservadora, não estão envolvidas por escândalos de corrupção ativa e passiva assemelhados? Por que, então, continuarmos nos atrelando à cômoda teoria do “mal menor”?

Ao advertir para o falso dilema em que estamos enredados, o voto nulo não é, neste momento, o bem menor? Não contribui para elevar a consciência crítica de companheiros para a identidade básica no conteúdo e na forma de ambas as propostas que restaram, identidade básica que as campanhas raivosas tentam desesperadamente encobrir?

Com um Congresso Nacional ainda mais conservador, alguém tem dúvida do que vai ser necessário negociar para garantir a famosa “governabilidade” de um eventual governo Dilma, para não falar de um eventual governo Aécio? Como o fortalecimento do desenvolvimentismo capitalista pode aproximar-nos de um socialismo atualizado?

A tática não deve servir à estratégia? Que diabo de tática é essa que no máximo nos conduz, há tantos anos, a um social-liberalismo, ao enfraquecimento progressivo das forças de esquerda e de centro e ao crescimento ameaçador das forças de direita? Se persistimos numa estratégia socialista, não devemos buscar uma nova tática – ampla, mas combativa e mobilizadora, que aproxime as forças de esquerda das forças de centro, mas invista contra as diferentes forças conservadoras e de direita, representativas do grande capital, nacional e transnacional, financeiro e produtivo?

Não existem “atalhos” para as verdadeiras transformações sociais, nem militaristas, nem pacifistas conciliadores. Se continuamos querendo essas transformações, temos que voltar, cada um de nós no limite de suas possibilidades, ao difícil e demorado caminho da mobilização, organização e educação política das bases populares e de seus aliados.

‘Votos de protesto foram o que mais de perto representaram junho de 2013'

O Brasil se prepara para o embate final entre Dilma e Aécio, novamente polarizando ânimos por todo o território, mas um detalhe não pode passar ao lardo de qualquer análise da primeira eleição após as famosas jornadas de junho: o recorde de votos nulos, brancos e abstenções, que atingiu 30% na primeira rodada. Aliás, não parece absurdo pensar em uma cifra até maior no dia 26.

“Grande parte da população não encontrou um caminho, não encontrou um candidato que realmente fosse alternativa, e não teve medo de fazer o voto de protesto, seja branco, nulo ou na abstenção. Acreditamos que a eleição demonstra uma maturidade política de trabalhadores e juventude e deixa um sentimento muito positivo”, disse Rafael Padial, da Frente pelo Voto Nulo, em entrevista ao Correio da Cidadania.

Em meio a variadas análises que buscam traçar um vínculo entre os grandes protestos de 2013 e os resultados nas urnas, de modo geral ainda mais conservadores, o militante anti-eleitoral não poderia deixar de fazer a sua. “Em parte, as bandeiras de junho foram aproveitadas, às vezes de forma até oportunista, mas o anseio geral, os desejos e o ambiente emanados de junho não se realizaram nas grandes candidaturas. Sem dúvida, se realizaram nos votos de protesto”, apontou.

Para Padial, novos junhos podem vir, uma vez que, em sua visão, o país se encontra no fim do ciclo político representado pelo PT, o que se agrava em meio a uma crise econômica internacional que cada vez mais rebate no país. “São tão grandes e tão profundas as contradições no Brasil que, independentemente do governo que entrar, não deve demorar muito para tudo estourar numa revolta mais séria, inclusive maior. E significativamente mais importante que as revoltas que tivemos em junho de 2013”, concluiu.

A entrevista completa, realizada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como vocês, da Frente do Voto Nulo, analisam os resultados gerais das eleições, no que diz respeito ao rearranjo das forças políticas?


Rafael Padial: Avaliamos que o resultado das eleições foi muito favorável para o conjunto de lutas da classe trabalhadora e da juventude. Não me refiro àquele resultado oficial, que aparece para a maioria das pessoas, sobre quem saiu na frente, quem elegeu mais... Falo do registro histórico de recorde do número de votos de protesto.

Ou seja, grande parte da população não encontrou um caminho, não encontrou um candidato que realmente fosse alternativa e não teve medo de fazer o voto de protesto, seja branco, nulo ou na abstenção. Justamente para não se vincular, compactuar e aceitar os grandes candidatos que estavam colocados, no caso, Marina, Aécio e Dilma.

Portanto, acreditamos que a eleição demonstra uma maturidade política de trabalhadores e juventude e deixa um sentimento muito positivo.

Correio da Cidadania: Como já falado, tivemos 30% de abstenções (entre brancos, nulos e ausentes) nas eleições, índice que tem crescido levemente ano após ano. O que esse número sugere como possível tendência?

Rafael Padial: O atual ciclo político do país está esgotado. Em grande sentido, o Partido dos Trabalhadores era a última esperança da maioria da população. Ao chegar ao poder e não resolver os principais problemas dos trabalhadores, essa última alternativa se esgotou.

Assim, há um vazio político nacional crescente, muito demarcado a partir do mensalão, em 2005, que agora se coloca de forma cada vez mais clara e acintosa como tendência. Tal vazio, infelizmente, não é ocupado por algum grupo político-partidário. Ou o é de forma muito incipiente. Por isso, a tendência geral dos trabalhadores e da juventude extravasa no voto de protesto.


Correio da Cidadania: Como vocês, partidários do voto nulo, lidam com os críticos, de diversos matizes políticos, dessa opção anti-eleitoral?

Rafael Padial: Evidentemente, respeitamos tais posições, independentemente de quem a pessoa vote. Mas existe muita lenda sobre o voto nulo, sobretudo nas afirmações de que o voto nulo iria para quem estivesse ganhando. Ideias disseminadas, em geral, por quem estava em segundo lugar nas pesquisas, já em 2010 e mesmo antes, para pressionar um “voto útil”. Foi o PSDB quem propagou tal lenda, para tentar quebrar o descontentamento popular, que vem aumentando, e absorver parte dele no chamado voto útil, supondo ser útil votar no PSDB pra tirar o PT do governo.

Temos dialogado pra mostrar que é falaciosa e mentirosa a ideia de que votos brancos e nulos vão para quem estiver na frente. São votos inválidos que não vão para ninguém e marcam uma deslegitimação do que está em disputa, principalmente o nulo. Assim, temos feito um processo de discussão, boca a boca, com trabalhadores e outros setores.

É claro que há quem defenda que a Dilma seja um caminho, ou o Aécio, ou a Marina, antes o Campos, mas dizemos que é ilusão. Nossa postura é sempre respeitosa e falamos que se trata de ilusão, de políticos cujas máscaras caem rapidamente.


Correio da Cidadania: Quanto à eleição presidencial, o que pensa da queda de Marina Silva e a subida de Aécio, culminando no quarto segundo turno seguido entre PT x PSDB?

Rafael Padial: A Marina foi um fenômeno justamente porque apareceu colada à imagem de mudança. Tão logo ficou claro que ela não era e nem podia ser a mudança, essa imagem sumiu.

Um fenômeno muito parecido ocorreu com a eleição para a prefeitura de São Paulo, quando o Russomano disparou e, ao final, caiu. A Marina tentou ocupar um espaço que ela própria destruiu, com seu programa e sua posição política. Afirmava-se como mudança, mas era obrigada a também fazer um discurso claramente conservador, que descontruía seu próprio solo enquanto bandeira da mudança. Foi sua gritante inconsistência que a fez cair. Ela tentou misturar PT e PSDB e isso, cedo ou tarde, ficaria claro ser insustentável.

Juntaram-se outros elementos, a exemplo da máquina petista, que é muito pesada. Os ataques da máquina petista fizeram efeito e, de outro lado, o apoio mais direto dos grandes meios de comunicação ao Aécio, que também atacaram e deslegitimaram a Marina.

De toda forma, o primeiro elemento, sem dúvida, é a própria inconsistência política do projeto da Marina. Nessa situação, a maioria dos votos que desejava uma suposta mudança entrou para o Aécio, como forma de talvez tirar o PT do governo. Votar no Aécio seria uma forma mais consistente e estável de alcançar esse objetivo.

Correio da Cidadania: A respeito das demandas eclodidas e expressadas em junho de 2013, acredita que estiveram representadas nas campanhas dos candidatos?

Rafael Padial: Algumas até estiveram. Por exemplo, o Eduardo Campos e a Marina defenderam a bandeira do passe livre. Mas só erguer as bandeiras não significa muita coisa. Elas significavam muito mais. O bordão “não é só por vinte centavos” já significa muito por si só. O sentimento geral de desejo de mudança, gerado em junho, não teve respaldo dentre os grandes candidatos, aqueles que foram postos como grandes opções.

Em parte, as bandeiras foram aproveitadas, às vezes de forma até oportunista, mas o anseio geral, os desejos e o ambiente emanados de junho não se realizaram nas grandes candidaturas. Sem dúvida, realizaram-se nos votos de protesto.

Correio da Cidadania: Os novos mandatos políticos, a depender de suas opções, podem ensejar novas revoltas de massa ou essas explosões pouco teriam a ver com resultados eleitorais?

Rafael Padial: O primeiro elemento que determina as revoltas que aconteceram no ano passado é uma situação geral da economia mundial. Num primeiro momento, o país ficou bem na crise global de 2007/2008, porque existiu um afluxo de capitais do mundo inteiro para o Brasil, Rússia, China, Índia etc.

Na medida em que esses capitais começaram a sair, na dita “inversão de capitais”, por volta de 2012 e 2013, o Brasil foi “integrado” à crise global mundial, o que estourou politicamente. Claro, esse quadro se juntou a uma conjuntura de inconsistência do ciclo político de dominação burguesa. A situação política da burguesia no Brasil está muito instável, ela não sabe, por exemplo, o que por no lugar do PT, partido cujo ciclo se esgotou. Assim, uniu-se um elemento claramente econômico, e mundial, com um elemento político, no caso, o da incapacidade de governança.

Significa que temos no Brasil uma grave crise estrutural. Não se trata, portanto, de uma crise conjuntural, que vai passar, mas de umas crise estrutural, no sentido de ser uma crise econômica muito grave e uma crise política muito séria, de incapacidade de domínio e controle da burguesia. A tendência é se aprofundar nos diversos governos que virão.

Quando essa nova crise política vai estourar é difícil de saber, mas certamente vai estourar nos próximos anos, tanto no âmbito federal quanto nos estados e diversos municípios. Trata-se da inconsistência estrutural de uma burguesia que já assumiu seu domínio de classe e que, sem dúvida, vai se expressar nos próximos anos. Pode ser que, com o PT, a derrocada demore um pouco mais, pois, se de um lado está totalmente interligado aos setores que controlam o Estado, como se vê nas alianças com Sarney, Renan Calheiros, Collor, o partido tem um controle social muito grande da classe trabalhadora e da juventude.

O PSDB, por estar relativamente dissociado desses setores - assim como o PMDB etc. -, se chegar ao poder central, pode ter alguns conflitos no próprio uso e controle do Estado, que podem desatar em confrontações piores e maiores instabilidades no país. Também por não ter um controle das bases sindicais – tem o apoio da Força Sindical, mas esta é muito mais frágil do que a CUT –, a tendência, com o PSDB, seria acelerar a instabilidade.

Se o PSB de Marina tivesse chegado ao poder, seria a situação mais instável de todas. Mas são tão grandes e tão profundas as contradições no Brasil que, independentemente do governo que entrar, não deve demorar muito para tudo estourar numa revolta mais séria, inclusive maior. E significativamente mais importante que as revoltas que tivemos em junho de 2013.

Crise da água em São Paulo é gerida de maneira política, diz professor da USP

Uso do "volume morto" adiou o racionamento mas não evitou o colapso do Sistema Cantareira. Perdas na rede de distribuição chegam à 40%

O Sistema Cantareira agoniza com o menor nível de sua história

A gestão eleitoreira da crise da água em São Paulo agrava a situação de um sistema que já está em colapso, de acordo com o professor aposentado da USP Julio Cerqueira César. “O uso do volume morto jogou o problema da água para depois da eleição”, disse o professor no evento “ Crise da água: de quem é a culpa?” promovido por CartaCapital na terça-feira, 9. “O racionamento foi colocada pela Sabesp como uma solução técnica, e o governador adotou uma solução política”, afirma.

Segundo Cerqueira César, a Sabesp, ainda em janeiro deste ano, apresentou ao governo um plano que previa o racionamento, diante do baixo índice dos reservatórios desde então, mas o governador impediu a ação, sob a justificativa de que seria uma medida irresponsável. O racionamento, pelo menos o anunciado oficialmente, tem sido evitado desde maio com o uso da reserva técnica chamada de volume morto. Na primeira etapa, foram 185 bilhões de litros bombeados desta reserva para o consumo de parte da população paulista. Em agosto, no entanto, mesmo com o implemento inicial, a Sabesp precisou captar uma segunda cota deste volume, de mais 100 bilhões.

Atualmente, o sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de água de parte de São Paulo e de Campinas, opera com 10% da sua capacidade. O nível do Sistema Alto Tietê, complementar ao Cantareira, está em 15%. A gestão dos sistemas cabe à Sabesp. O governo de São Paulo indica o presidente da instituição que, por sua vez, nomeia todos os diretores da empresa. Além disso, o estado é o principal acionista da Sabesp, que lucra 10 bilhões de reais por ano. “Desde de o começo, em janeiro, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) assumiu o comando da crise. Ele está conduzindo o problema pessoalmente e politicamente. Ele queria passar a Copa do Mundo e as eleições sem racionamento, e é o que está conseguindo fazer”, diz Cerqueira César.

Falta de investimentos

Além dos baixos índices pluviométricos, atribui-se à crise do abastecimento em São Paulo a falta de investimentos no setor, como a construção de novos reservatórios. “A Sabesp é a 4ª companhia de saneamento básico do mundo, e se considerarmos que opera em apenas um país, ela é a maior do mundo. Até os anos 90, a Sabesp chegou a uma situação invejável ”, afirma Cerqueira César. “De 1990 pra cá, os governos se preocuparam apenas com os processos eleitorais. A Sabesp aposentou seus engenheiros sanitaristas e passou a ser comandada por economistas e advogados. Parou de se preocupar com seus usuários e passou a se preocupar com seus dividendos.”

Em 2007, a diretoria da Sabesp já previa o colapso do sistema e o governo do Estado passou a planejar novos reservatórios. Um estudo foi encomendado e o prazo de execução foi estabelecido em 180 dias, mas só foi entregue em 2014, sete anos depois. O resultado é a obra do Sistema Produtor São Lourenço, que está prevista para ficar pronta em 2018.

De acordo com Antonio Zuffo, pesquisador e professor da Unicamp, que também estava presente no evento, o Sistema São Lourenço está sendo projetado para acrescentar 4,7 m³ por segundo de vazão de água ao Sistema Cantareira. “Se acontecer a redução da precipitação em 20 a 30%, que é o que está previsto, o Sistema Cantareira perde 7 m³ por segundo de vazão. Ou seja, o São Lourenço não seria suficiente para compensar a perda”, explica o professor.

Outro ponto levantado é o desperdício que ocorre na distribuição da água. Segundo Zuffo, a Sabesp chega a perder 40% da sua produção. “Se conseguíssemos uma redução de 50% do que é perdido hoje no Sistema Cantareira, seria recuperado o equivalente a quatro sistemas parecidos com o São Lourenço. Conseguiríamos um redução da perda em aproximadamente 10 ou 12 m³ por segundo de vazão. Seria como se colocássemos um sistema que produz 12 m³ por segundo”, diz o pesquisador da Unicamp.

As perdas acontecem porque as adutoras não são fixas e, com a variação de pressão, acabam se deslocando e desgastando nas juntas, o que causa os vazamentos, difíceis de detectar, explica Zuffo. Para César, o prejuízo é inadmissível. “A Sabesp é uma indústria de água potável. A matéria-prima é a água. Se uma empresa particular tivesse um sistema como esse, que perde 40% do seu produto, ela estaria falida”, diz o professor da USP.

Sob a justificativa de impedir essa perda na distribuição, a Sabesp tem reduzido a pressão da água nos canos e algumas residências paulistanas já enfrentam uma espécie de racionamento velado. Em julho , o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) encaminhou à Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), a Geraldo Alckmin e à Sabesp um documento contabilizando uma média de 14 reclamações por dia de corte no abastecimento de água em residências paulistanas.

Ainda que seja um fator importante, a falta de chuvas ou as variações climáticas não explicam, sozinhas, o colapso do sistema, segundo Zuffo. A alegação de que desmatamento na Amazônia, apontado como causador da baixa precipitação na região do Sudeste, é equivocada. “Em 1953 não havia desmatamento na região, nas proporções que temos hoje, e tivemos período de seca em São Paulo”, esclarece o pesquisador da Unicamp.

O evento "Crise da água: de quem é a culpa?" faz parte da série de debates Diálogos Capitais e contou com a mediação do repórter Fabio Serapião.

 

O quartinho escuro da política

Quando eu tinha seis anos de idade e cursava a primeira série do antigo primário, vivi uma experiência traumática. Em uma reunião disciplinar, uma funcionária da escola em que eu estudava, presumo que fosse a supervisora, advertiu-me: crianças que faziam bagunça em sala de aula ficariam de castigo em um quartinho escuro, repleto de insetos e bichos peçonhentos. O susto não foi pequeno. Meio aterrorizado e com meus próprios recursos, procurei saber onde se localizava o tal “quartinho escuro”, sem, evidentemente, ter vontade de conhecê-lo por dentro. Com o tempo, entendi o significado da pedagogia do medo e suas metáforas.

A principal lição que extraí do citado episódio, cuja compreensão aprofundei em meu ofício de historiador, é que o medo é um poderoso agente intimidador e mobilizador, seja no plano individual, seja na escala societária, como revelam incontáveis processos culturais e políticos. Seria dispendioso citar os muitos exemplos que a história da humanidade fornece. Fiz essa digressão inicial para comentar a incidência da pedagogia do medo em alguns fatos, relacionados com a corrida presidencial, da nossa recente história política.

Quando a atual campanha eleitoral teve início, uma peça da propaganda do PT veiculava a ideia de que eventual vitória dos tucanos seria a volta a um passado terrível. Os oito anos do governo do PSDB eram pintados com cores sombrias, quase um filme de terror. Essa peça era acompanhada de outras, que circulavam por outras mídias, em que os dados de cada período de governo eram sistematizados de forma conveniente, de maneira a fixar a imagem de que houve uma grande ruptura entre um ciclo e outro.

Um breve recuo no tempo demonstra que o atual partido governista sofreu, em seus primórdios, com esse tipo de anti-propaganda. Em 1989, por exemplo, diziam que eventual vitória petista espantaria 800.000 empresários do país. O Brasil estaria na fronteira do caos ou do comunismo. Em 2002, mesmo repaginada para exorcizar a imagem de radicalismo, a candidatura petista ainda enfrentou a especulação do mercado. Um dos sintomas foi a disparada do dólar. O novo ciclo de governo conviveu com a persistente advertência, divulgada por opositores, de que estaria sendo preparado um golpe de Estado no estilo bolivariano.

A recente ascensão da candidatura de Marina da Silva ao patamar de favorita introduziu novo capítulo nessa história. Vinda de várias direções, com presumida indução das forças políticas tradicionais, foi desencadeada a temporada de desconstrução de sua imagem. Circulam, pelo Facebook e por outras mídias, imagens terríveis do que seria o Brasil governado por ela. A mais recorrente é a de que sua vitória seria um passaporte para o caos. Em pouco tempo de seu governo, o país estaria em uma crise aguda, abrindo caminho para uma solução autoritária.

Como educador, abomino a pedagogia do medo, que saiu de pauta nas escolas, mas continua em alta no mundo da política. Ela deseduca e despolitiza. Até quando vão infantilizar os eleitores, ameaçando-os com o castigo do quartinho escuro? Nem as crianças de seis anos acreditam mais nisso. Vamos elevar o nível do debate!

Reginaldo Benedito Dias é professor do Departamento de História, Universidade Estadual de Maringá (DHI/UEM), e Doutor em História Social pela UNESP

Relatório em Davos mostra que 85 pessoas detêm 46% da riqueza mundial

Davos , este ano, a estação de esqui recebeu mais um fórum mundial

Apenas 85 pessoas no mundo detêm 46% de toda a riqueza produzida no planeta – mesmo percentual de metade da população – segundo um novo relatório, divulgado nesta segunda-feira no Fórum Econômico de Davos , na Suíça. O documento realça a incapacidade de políticos e líderes empresariais em deter o crescimento da desigualdade econômica.

“Os resultados apresentados no estudo minam a democracia e tornam mais difícil a luta contra a pobreza”, afirmou o grupo humanitário britânico Oxfam International, que assina o relatório.

– É impressionante que, em pleno Século XXI, metade da população mundial tenha apenas um pouco mais do que uma elite cujos números permitem tê-los, todos, sentados confortavelmente em um único vagão de um trem. Ampliando-se a desigualdade, cria-se um círculo vicioso no qual a riqueza e o poder concentram-se, cada vez mais, nas mãos de poucos, deixando o resto de nós a lutar por migalhas da mesa superior – disse Winnie Byanuima, diretora executiva do grupo.

Lição de Marx

Em um outro relatório, divulgado na semana passada, o Fórum Econômico Mundial já abordava a desigualdade e a concentração de renda no mundo como o mais sério risco de danos políticos e instabilidade na próxima década. Na segunda década do século XXI confirma-se, integralmente, a Lei Geral da Acumulação Capitalista formulada assim n'O Capital, do economista Karl Marx: “À medida que diminui o número dos potentados do capital que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste período de evolução social, crescem a miséria, a opressão, a escravatura, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe operária”.

A Organização Internacional de Trabalho (OIT), em linha com a miséria causada por um sistema global intrinsecamente injusto, mais de 200 milhões de trabalhadores estão desempregados no mundo. Apenas a União Europeia tem mais de 30 milhões de pessoas sem emprego e 127 milhões vivendo na pobreza extrema. Na França, mil empregos são destruídos por dia e cinco milhões estão sem trabalho. Na América Latina e Caribe a taxa de desemprego entre os jovens é de 13,7%, ou 22 milhões; na Espanha, 56%, e na Grécia, 61%. Ainda de acordo com a OIT, 73 milhões de jovens estão desempregados e este índice continua crescendo.

Na Alemanha, um dos maiores exportadores do mundo e país mais rico da União Europeia, 30% da população vivem abaixo da linha de pobreza e 7,45 milhões de trabalhadores têm “miniempregos”, nos quais o trabalhador recebe 450 euros (R$ 1.200) por mês. Caso esses trabalhadores fossem somados à população desempregada, o desemprego pularia de 7% para 24%.

Na principal cidade dos Estados Unidos, Nova York, 50 mil trabalhadores moram em abrigos porque seus empregos são de baixa remuneração e na Espanha, até junho de 2013, 20 mil famílias foram despejadas de suas casas.

A fome segue como a principal causa de morte no planeta. Na década de 1950, 60 milhões de pessoas passavam fome. Atualmente, são quase um bilhão. Mas, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o número de pessoas com desnutrição – que sofrem de uma ou mais deficiências em micronutrientes (vitaminas e outros) – já alcança dois bilhões. Segundo Jean Ziegler, ex-relator especial para o Direito à Alimentação das Nações Unidas (ONU), 18 milhões morrem de fome por ano e, a cada 5 segundos, uma criança morre de fome.

O desenvolvimento do capitalismo, portanto, não trouxe mais progresso nem uma vida melhor para a maioria da população , mas sim desemprego, fome e sofrimento. Porém se a pobreza aumenta, cresce a riqueza daqueles 85 capitalistas. Em 2000, apenas 1% dos norte-americanos detinha 32,8% da riqueza do país; em 2013, passaram a abocanhar 40%.

Oligarquia financeira

No mundo, de acordo com Mapa da Desigualdade em 2013, os 10% mais ricos do planeta detêm atualmente 86% da riqueza mundial. Destes, 0,7% tem US$ 98,7 trilhões e a posse de 41% da riqueza mundial, maior valor já registrado na História da Humanidade. Com uma enorme soma de capital em suas mãos, um reduzido grupo de multimilionários, donos de grandes bancos, fundos de investimentos e monopólios espalhados pelo planeta, controla a indústria, o comércio e a agricultura.

Estudo realizado pelo Instituto Federal de Tecnologia da Suíça enfocando 43 mil empresas multinacionais concluiu que 174 delas (na maioria bancos) controlam 40% da economia mundial. Nos Estados Unidos, maior país capitalista do mundo, apenas cinco bancos (JP Morgan, Goldman Sachs, Citigroup, Bank of América e Weels Fargo) têm ativos de US$ 8,5 trilhões, cerca de 56% do PIB, e 10 empresas controlam 85% dos alimentos de base negociados no mundo.

Não bastasse, desde o início da crise, governos e bancos centrais repassaram mais de US$ 30 trilhões a essa oligarquia financeira, provocando o maior endividamento público da história. Somente o Tesouro dos EUA, segundo relatório do U.S. Government Accountability Office (U.S. GAO), entregou 16 trilhões de dólares em empréstimos a juros negativos às grandes empresas e bancos do país, embora tenha demitido milhares de funcionários públicos.

O resultado desses planos de ajuda aos bancos foi o crescimento exponencial das dívidas públicas, dívidas dos Estados, mas pagas pelos impostos cobrados dos trabalhadores. Em 2007, a dívida pública dos EUA era de 66,5% do PIB, e pulou para 106,5% em 2012, levando o país a viver em estado permanente de calote. A dívida pública do Japão é superior a 200% do PIB e a da França, segundo o próprio governo, chegará a 95,1% do PIB em 2014. Por sua vez, dados do FMI indicam que a dívida do governo central da China soma 46% de tudo o que o país produz.

Para pagar essas dívidas, a solução dos governos capitalistas são os chamados planos de austeridade, ou seja, jogar esse endividamento nos ombros dos trabalhadores. Por isso, medidas como redução de salários dos funcionários públicos, cortes das verbas para a saúde e educação, privatização de empresas públicas, eliminação de direitos trabalhistas, diminuição das aposentadorias e, consequentemente, destruição de pequenas e médias empresas.

Ao lado do crescimento da concentração de capital, do aumento de fusões e aquisições entre as empresas em todo o mundo, temos o aumento exponencial da especulação financeira. Segundo relatório do Mackinsey Global Institute, em números absolutos, o estoque total de ativos financeiros – depósitos bancários, financiamentos, títulos de dívida privada e pública, ações de companhia – atingiu US$ 225 trilhões no ano passado. Um volume 10% maior que em 2007, ano de início da crise, e o equivalente a 312% da produção global. Já o montante dos derivativos no mundo atingiu US$ 600 trilhões em 2011, segundo números do Bank for International Serrlements (BIS).

É esta oligarquia financeira que impõe sua vontade e seus interesses em todos os países e obrigam os governos e os bancos centrais da Europa, América Latina, África ou da Ásia, a adotarem a mesma política de ampla proteção ao capital financeiro. Ocorre, assim, uma verdadeira fusão do Estado com o capital financeiro.

Dessa forma, a globalização da economia nada mais é que a extensão do domínio desse pequeno e poderoso grupo de bilionários dos países imperialistas em aliança com a grande burguesia dos demais países, para obter superlucros.

Luta de classes

Há, ainda, o acirramento das contradições interimperialistas, isto é, entre EUA, Rússia, China, Alemanha, Japão, Inglaterra e França. Essas contradições ficam evidentes, quando verificamos que não existe um acordo comercial amplo no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC); prossegue a chamada “guerra cambial” ou a tentativa de impor o dólar e o euro como únicas moedas no mundo; bem como a feroz disputa pelo controle de regiões estratégicas do planeta, como se verifica na África, e em particular, no Oriente Médio, para ter a posse do petróleo, gás e de minérios estratégicos.

Na outra ponta, as potências capitalistas realizam acordos e tratados comerciais, visando a enfraquecer concorrentes e redividir os mercados, como fica claro, nos acordos dos EUA com a União Europeia para formar uma área de livre comércio e com o Japão no Pacífico, procurando isolar a China; da França com a Alemanha na Europa, ou com os acordos comerciais e investimentos da China na África e na América Latina.

São ainda características da crise, além da destruição de empregos, elevação do preço dos alimentos e do custo de vida e o empobrecimento das massas, o enriquecimento da grande burguesia mundial, em particular da alemã e da norte-americana, o surgimento de um reduzidíssimo número de milionários na China e o aumento das intervenções militares e guerras para saquear nações e controlar suas riquezas.

Em resposta a essa situação, os trabalhadores e a juventude organizam greves gerais, enfrentam os governos e seus aparelhos de repressão e promovem protestos e lutas. Os levantes populares na Tunísia, Egito, e em outros países da África; as greves gerais na Europa, a revolta de junho em nosso país, etc., são exemplos claros dessa tendência. Também, em função das medidas econômicas adotadas pelos governos burgueses em favor de bancos e monopólios, cresce o descrédito das massas no Estado burguês e em suas instituições, como Parlamento, União Europeia, FMI, OMC e ONU.

Com sua base social cada vez mais reduzida, os governos burgueses ampliam os gastos militares visando a enfrentar as revoltas populares e manter este carcomido sistema econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção. O orçamento militar dos Estados Unidos cresceu 90% nos últimos 13 anos. A Rússia, em 2011, aumentou orçamento militar em 9,7% e a China elevou em 11,2% os gastos militares no ano passado.

Em outras palavras, os governos capitalistas aumentam a repressão sobre as massas, criminalizam os protestos e os movimentos sociais e montam uma rede de espionagem mundial na telefonia e na internet, violando as mais elementares liberdades democráticas.

O fato é que, neste século 21, temos um aumento extraordinário das guerras e intervenções militares imperialistas, como no Mali, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e Haiti, e, em outros países ocorre um processo de fascistização dos governos com a supressão de vários direitos democráticos, comprovando, como afirmou Lênin em sua obra O Imperialismo, fase final do capitalismo, que este sistema, em sua fase imperialista, tende para a violência e o autoritarismo.

Em síntese, o plano da burguesia mundial é resolver a crise, aprofundando a exploração das massas trabalhadoras, invadindo países, dominando povos e se apoderando, por meio de guerras, das riquezas naturais e dos mercados para garantir uma nova partilha do mundo e a escravização de bilhões de pessoas por um minoria de exploradores capitalistas.

Portanto, diferente do que prometeu a burguesia mundial, o século 21 não é o século da paz nem da harmonia entre capital e trabalho. Pelo contrário, em vez do “estado do bem-estar social”, temos crises econômicas, fome, ampliação do comércio de drogas e da prostituição, e o acirramento da luta de classes em todos os continentes.

Movimentos táticos

Ingressamos em um novo período de confrontos entre as classes, caracterizado, de um lado, pelo aumento da exploração dos trabalhadores, uma enorme destruição das forças produtivas, e o desencadeamento de novas guerras imperialistas e, de outro lado, pela resistência das massas exploradas e por um impressionante avanço das greves operárias e das lutas da juventude e demais oprimidos.

Os próximos anos serão, assim, anos de uma acirrada disputa por mercados e pelas riquezas naturais, como petróleo, minérios, pela água, e de grandes enfrentamentos entre as classes.

Porém, como afirma a Conferência Internacional de Partidos e Organizações Marxista-Leninistas (CIPOML), “os resultados da crise econômica capitalista dependerão das forças políticas atuantes e da sua inteligência para aproveitar a conjuntura. De uma crise econômica e uma guerra mundial surgiu a primeira revolução socialista, a de outubro de 1917 na Rússia, mas também, de uma grande crise econômica surgiu o fascismo alemão, o nazismo, encabeçado por Hitler. Quer dizer, a crise pode contribuir para a revolução, se existir uma força política com influência nas massas e capacidade para desenvolver os movimentos táticos que permitam derrubar os governos burgueses e pró-imperialistas”.

Portanto, caminhamos para duros combates entre os exploradores e explorados. As potências imperialistas não vacilarão e não têm vacilado em tudo fazer para salvar seu injusto sistema econômico e político e para que as riquezas continuem nas mãos de uma ínfima minoria, da oligarquia financeira internacional e seus sócios, embora isso signifique crianças morrendo de fome, milhões de operários desempregados, famílias vivendo sem casa, mais guerras e destruição do meio-ambiente.

Com efeito, a classe capitalista nunca ficou de braços cruzados vendo sua riqueza derreter, sempre agiu para proteger o lucro, a acumulação capitalista e a reprodução do capital. Não importa o que tenha que fazer nem quantas guerras tenha que realizar. Mas é verdade também que, por toda parte, avança a luta por uma vida nova, para libertar a humanidade das guerras e da exploração do capital e a perspectiva da revolução e do socialismo torna-se a cada dia mais concreta.


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Direitos Sociais têm lugar subalterno na ‘economia política' da sucessão presidencial

Economia política trata, segundo uma linguagem de compreensão geral, das questões da produção e repartição do ‘bolo' econômico entre diversos grupos e classes sociais de um país determinado. Pressupõe alianças de poder econômico e poder político para repartir a renda social, para o que conta principalmente com o manejo dos meios regulatórios, tributários, orçamentários e monetários que o Estado moderno detém em sua íntima relação com os mercados.

Na atual campanha presidencial, vêm se delineando, de forma declarada ou implícita, estratégias de economia política dos três principais candidatos presidenciais, segundo as pesquisas eleitorais, que, uma vez decifradas pelos eleitores, provavelmente, gerariam muito mais inquietação que generosa preferência e adesão. Vou me restringir a dois aspectos muito relevantes na repartição do bolo econômico, que de certa forma exprimem a relação capital-trabalho no processo político, com direta incidência sobre a repartição da renda social: o trato da riqueza financeira, da riqueza fundiária e dos direitos sociais no debate sucessório.

Aos três candidatos principais – Dilma, Marina e Aécio - parece ‘natural' que os proprietários da riqueza financeira e da riqueza imobiliária (urbana e rural) continuem a usufruir benesses pela posse desses ativos, tanto mais elevados quanto mais ricos forem, cada vez mais isentos de responsabilidades sociais. Nenhum deles, nos seus programas publicados, cogita estabelecer limites ou condicionalidades à concentração do capital e do dinheiro nas mãos dos detentores dessas riquezas. Ao contrário, banqueiros, usineiros e empreiteiros comparecem como grandes doadores de campanha de todos os candidatos principais e graciosamente ocupam um lugar de destaque prévio nas estratégias programáticas.

A bem da verdade é preciso dizer que os dois candidatos mais cotados nas pesquisas eleitorais – Dilma e Marina – fazem e prometem o caminho inverso do que se deveria esperar no jogo democrático: mais concentração econômica e privilégios para os do andar de cima, com o que condicionam o que fariam aos direitos sociais com sentido claramente residual. O terceiro candidato, Aécio Neves, seguidor assumido do receituário neoliberal, critica a forma “estatizante” de garantir os privilégios econômicos, isentos de responsabilidade social, mas não o sentido dessa estratégia, que seguiria com mais liberdade aos mercados.

Dois exemplos concretos ilustram o jogo sucessório. No primeiro caso, a candidata Dilma continuaria sua política de produção de novos milionários e bilionários com recursos públicos (do sistema BNDES, do Sistema Nacional de Crédito Rural, do sistema PETROBRAS e do sistema ELETROBRAS), ainda bafejados por desonerações de contribuições sociais, de que tanto se jacta.

Nenhuma condicionalidade social e ambiental à exploração excessiva de recursos naturais, o caminho perseguido como eixo do crescimento econômico no seu governo, diga-se de passagem, com insucesso evidente para fazer o “bolo” crescer.

No segundo caso, Marina da Silva, que não estando no governo apressa-se em anunciar a concessão de independência ao Banco Central, retirando das mãos de Aécio Neves o bastão neoliberal, para uma manobra que os mais experimentados operadores da política econômica, como o ex-ministro Delfim Netto, consideram absolutamente desnecessária.

O ordenamento jurídico do Banco Central brasileiro confere de fato e de direito uma irresponsabilidade absoluta ao Banco Central, segundo os critérios da Lei de Responsabilidade Fiscal, para criação de dívida pública nova, inexistente, por exemplo, no Banco Central norte-americano. A isso e a todas as prerrogativas de um Banco Central – de fiscalização do sistema financeiro, de controle e aplicação das reservas externas, de gestão do câmbio, de gestão da moeda e principalmente de produção da taxa básica de juros, que remunera os detentores da dívida pública –, dona Marina promete absoluta independência em relação aos cidadãos brasileiros. Estamos falando de mais de 2 trilhões de Dívida Pública Interna; de Reservas internacionais da ordem de 350 bilhões de dólares; e da fiscalização do imenso patrimônio do sistema financeiro, que a candidata propõe independentes do controle do Estado.

Observe-se que, com a estratégia de novos milionários e bilionários alavancados pelos recursos públicos, da candidata Dilma ou com a estratégia neoliberal de Marina e Aécio, sobram às políticas sociais, aos direitos sociais e às exigências de condicionalidades que incidam sobre o direito de propriedade (a função social e ambiental da propriedade fundiária, por exemplo) um lugar absolutamente periférico e residual.

Saúde, Educação, Previdência Social, Assistência Social, Reforma Agrária etc., enquanto direitos sociais onerosos ao Estado ou regulamentáveis pela aplicação dos critérios constitucionais, têm lugar subalterno na economia política da sucessão. E as condicionalidades do Estado democrático para a posse e propriedade de recursos naturais, que são mandamento constitucional, somem nos programas dos candidatos, até mesmo no da ambientalista Marina. Isto tudo sob obsequioso silêncio da grande mídia e dos três principais presidenciáveis.

O meu limite físico chega ao final neste artigo. Mas não a perplexidade com os rumos que nos esperam, a prevalecer o jogo político sucessório que ora está desenhado.

Carta do MST às candidatas e candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais

Os períodos eleitorais devem ser momentos de debate sobre as grandes questões estruturais da sociedade brasileira, apontando a natureza de nossos problemas e as soluções necessárias. Infelizmente, cada vez mais, o poder do capital sequestra a política e as instituições públicas, impedindo as transformações políticas e econômicas, que interessam ao povo brasileiro.

Há 30 anos, o MST tem contribuído com a democratização da terra, através da luta pela Reforma Agrária. Em fevereiro de 2014, realizamos nosso VI Congresso, com a aprovação de nosso Programa Agrário em defesa da Reforma Agrária Popular. Lutamos por mudanças na relação com os bens da natureza, na produção de alimentos e nas relações sociais no cam­po. Queremos contribuir de forma permanente na construção de uma sociedade justa, igualitária e democrática.

A terra precisa ser democratizada e cumprir com sua função social. O campo dever ser um espaço bom de viver, onde as pessoas tenham seus direitos respeitados, com a garantia de condições dignas de vida. Lutamos e exigimos u ma política efetiva, estruturante e massiva de Reforma Agrária Popular, indispensável para a permanência das famílias no campo, com produção e distribuição de riquezas.

Exigimos a atualização imediata dos índices de produtividade prevista na legislação brasileira, possibilitando o acesso à terra a milhares de famílias. Precisamos da elaboração e execução de um novo Plano Nacional de Reforma Agrária - PNRA, com metas de assentamento de famíliase estabelecimento de prioridades por regiões. É necessário a arrecadação das terras griladas da União e a desapropriação de latifúndios em todos os estados. Além disso, as terras devolutas invadidas por fazendeiros e principalmente, pelo capital bancário e pelas empresas transnacionais do agronegócio, devem ser desapropriadas para fins de Reforma Agrária. O mesmo deve acontecer com as fazendas endividadas com os bancos públicos e órgãos do governo, com as áreas onde houver identificação com exploração de trabalho escravo e as que não cumprem a função social.

Cobramos o assentamento imediato das mais de 120 mil famílias que estão vivendo em condições precárias em centenas de acampamentos por todo o país. É necessário destinar para a Reforma Agrária as terras dos projetos de irrigação e as do entorno dos canais de transposição das águas. Para isso, faz-se necessário o fortalecimento, reorganização e qualificação do INCRA, como órgão responsável pela Reforma Agrária e que garanta as condições de implementá-la.

Nos somamos às lutas e às reivindicações, junto às demais forças sociais do campo, para a imediata demarcação e legalização de todas as áreas indígenas e quilombolas e as de posse de ribeirinhos, pescadores e comunidades tradicionais, como estabelece a Constituição Federal de 1988.

A não realização da Reforma Agrária agrava os conflitos sociais no campo. Clamamos por justiça e pela punição aos mandantes e assassinos dos trabalhadores e trabalhadoras no campo.

A agricultura brasileira deve priorizar a produção de alimentos saudáveis, como um direito humano e como princípio da Soberania Alimentar. Alimento não pode ser mercadoria, fonte de exploração, lucro e especulação. Para isso, exigimos políticas públicas que garantam condições para a produção agroecológica, sem agrotóxicos, com qualidade, diversidade e preço barato para toda a população brasileira. Os governos, federal e estaduais, precisam incentivar e garantir a produção, seleção e armazenamento de sementes pelos próprios camponeses, combatendo assim as sementes transgênicas e a dependência política e econômica das empresas transnacionais que monopolizam sua produção e comercialização. Somos contra as leis de patentes e a privatização de nossas sementes.

É indispensável, para o desenvolvimento social e econômico do campo, retomar, ampliar e garantir os instrumentos de compra de todos os alimentos produzidos pela agricultura camponesa, para atender escolas, sistema de saúde, de segurança e universidades, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos - PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE.

A educação é um direito fundamental de todas as pessoas e deve ser atendido no próprio lugar onde vivem, respeitando o conjunto de suas necessidades humanas, culturais e sociais. Necessitamos que todas as áreas de assentamentos e acampamentos tenham sua própria escola, com condições necessárias para o seu funcionamento. Não aceitamos o fechamento de nenhuma escola do campo e exigimos a implementação de um programa massivo de erradicação do analfabetismo. Lutamos pela defesa, universalização, ampliação de recursos e o acesso efetivo ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, garantindo que jovens e adultos, que vivem no campo, possam avançar na escolarização.

O assentamento é nosso território de luta, produção, reprodução e garantia de nossa vida, lugar de defesa e construção de um modelo de agricultura, com a produção de alimentos saudáveis e acesso aos bens sociais e culturais. Para isso, é necessário assegurar condições dignas de vida às populações camponesas e urbanas, produzindo uma nova sociabilidade.

Exigimos políticas de proteção dos bens naturais, das águas e fontes, assegurando que todas as famílias camponesas tenham acesso à água potável e de qualidade, com saneamento básico. Repudiamos o processo de privatização da água.

Lutamos pela implementação de um programa de moradia popular no campo, que garantao seu acesso de forma rápida e desburocratizada, eliminando o déficit atual de mais de 1 milhão de casas para a população camponesa.

Reivindicamos a ampliação e execução de um programa de agroindustrias nas áreas de Reforma Agrária, a partir das cooperativas de trabalhadores e trabalhadoras, de forma desburocratizada. É preciso assegurar o desenvolvimento de tecnologias apropriadas à realidade das comunidades camponesas com o desenvolvimento de programas de máquinas e equipamentos agrícolas.

É urgente a reorganização e fortalecimento do sistema público de Assistência Técnica e Extensão Rural, voltado e subordinado às necessidades e objetivos dos camponeses e das camponesas. A ele deve somar-se um programa de crédito rural que contribua para a estruturação do conjunto de todas as unidades e sistemas produtivos, estimulando e fortalecendo o cooperativismo, a comercialização e a industrialização da produção. Exigimos a garantia e ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores e trabalhadoras do campo e assalariados rurais.

É necessário o compromisso de todos e de todas para a realização de uma ampla reforma política,que democratize as instituições e possibilite ao povo o direito de escolher seus representantes. E para isso exigimos a convocação de uma Assembleia Constituinte soberana e exclusiva, ainda em 2015.

São essas algumas das mudanças urgentes e necessárias, para melhorar as condições de vida e de renda no campo, que todos os governantes eleitos devem implementar. Reafirmamos nossa disposição em lutar, de forma permanente, em defesa e na construção da Reforma Agrária Popular e de uma sociedade socialista. DireçãoNacional do MST.

‘Sempre que houver a menor ameaça de mobilização social, teremos suspensão de direitos básicos'

A Copa do Mundo chegou ao final e já estamos voltando à realidade nacional, entrando de cabeça no clima eleitoral e toda a sua renhida disputa política. O debate entre as correntes políticas dominantes e o movimento social continuará em cena, talvez de forma mais intensa do que no período dos jogos. E algumas questões só poderão ser respondidas com o tempo.

“Sobre a Copa, houve muito erro tático e estratégico dos movimentos que estavam se organizando para protestar. Eles tinham tudo para ganhar volume, tudo. As condições eram muito favoráveis. Até muito poucos dias antes de a Copa começar, metade da população estava com sentimentos contrários à Copa. Mas não tiveram a capacidade de organizar a insatisfação e dar a ela expressão política sólida”, disse Pablo Ortellado, em nova entrevista concedida ao Coletivo Copa, que se pautou em uma produção jornalística alternativa durante o evento futebolístico.

Além da análise da atual dinâmica da movimentação social, com os diversos matizes oferecidos por grupos que vêm ocupando importante espaço na política (que Ortellado entende como um processo de continuidade ao comandado pelo PT desde o final dos anos 70, porém, com movimentos descolados do partido), o ativista oriundo do “autonomismo brasileiro” joga o olhar para os próximos tempos, em sua visão acossados por uma sombria experiência de suspensão de direitos civis básicos, vivida durante a Copa.

“Se o PT, principalmente, por ter raízes no movimento social, pensa que suspender direitos, excepcionalmente, não vai deixar marcas profundas na sociedade, está muito enganado. Viveremos durante muito tempo sob a sombra desse regime de exceção. Porque as instituições vivenciaram a experiência de que podem suspender direitos civis e nada acontece. Você acha que é só na Copa, que depois voltaremos a um regime de normalidade? Não vamos voltar à normalidade! Vamos viver dias muito ruins por conta do que aconteceu na Copa. Provavelmente, trata-se de seu legado mais perigoso”, afirmou.

A entrevista completa com Pablo Ortellado pode ser lida a seguir.

Gostaríamos que você falasse um pouco de como, antes mesmo de ser uma referência no assunto mobilização política das manifestações de rua, você se encaixou nas lutas. Como foi sua trajetória de ativismo?

Pablo Ortellado: Minha história no ativismo é dos anos 80. Eu sou da geração do punk que fez a passagem para o ativismo no ano de 1987, quando o punk se aproximou do anarquismo, principalmente do velho anarquismo sindical, e nos encontramos no Centro de Cultura Social (CCS), nos anos de 1987 e 1988. Participei das mobilizações do final dos anos 80, na época da redemocratização e da nova Constituição. Segui uma trajetória de militância que no final dos anos 90 passou para o movimento antiglobalização. Em seguida, estava envolvido na fundação do Centro de Mídia Independente e no processo que levou à fundação do MPL. Uma trajetória, do ponto de vista de corrente ideológica, ligada à origem do ‘autonomismo brasileiro'.

Tendo então começado pelo punk, teve relação com o skate, o hardcore?

Pablo Ortellado: Na verdade, isso é antes do hardcore. Porque nos anos 80 tinha uma cena punk que era uma coisa só, inclusive se misturava com a cena skinhead. Tivemos duas cisões, entre 1986 e 88. A cena punk se dividiu em duas. Depois, teve uma cisão meio de classe, entre punks e hardcores, que ficou uma coisa um pouco mais de classe média, enquanto o punk ficou como uma expressão mais da periferia.

Na verdade, não tinha muita coisa na classe média, mas se constituiu uma cena que se cindiu. E houve a cisão ideológica entre os punks e os carecas também. Um grupo foi para a esquerda e outro para a direita. Isso não estava muito bem definido em 1987, por exemplo. Em 1987 e 88 foi quando os punks se aproximaram do Centro de Cultura Social e começaram a organização dos sindicatos. Houve a tentativa de refundar a Confederação Operária Brasileira (COB), que foi o primeiro sindicato anarquista, tentativa que quase decolou nos anos 80. Participei bastante. Tentamos fundar o sindicato dos office-boys naqueles anos. Aí os punks foram para a esquerda, os carecas foram bem para a direita e aos poucos foram seguindo esse ideal meio xenófobo, meio racista.

O 1º de maio de 1988, convocado pela CUT, foi um marco. Os punks foram e fizemos a comissão de segurança. O 1º de maio na época era massivo. Foi na Praça da Sé, com 30 mil pessoas, sem nenhum grande show, na época em que o movimento operário se mobilizava de verdade, sem nenhum tipo de atrativo musical. Os carecas organizaram um ataque. Foi um símbolo, uma verdadeira ruptura. Os dois grupos, que eram um pouco misturados, se cindiram. Já havia uma pequena tensão, meio de gangue, mas ali se separou de um ponto de vista ideológico. Os punks estavam com a COB, fazendo a segurança do ato, e os carecas foram lá para atacar. Apanharam feio da CUT e dos punks.

Como começou esse problema entre punks e os carecas?

Pablo Ortellado: Eu não sei do lado deles. Eu não acompanhei a mudança pelo lado deles e como foram para a direita. Eu não sei dizer, porque eu não acompanhei, estava junto com os punks. Sobre os punks, eu sei dizer. Os punks tinham uma cultura muito de gangue nos anos 80 e uma politização muito confusa. Era muito contracultural, muito antissistêmica, mas no sentido meio existencial. Aí começou um trabalho de base do pessoal da COB. Eu não sei exatamente quem nos levou lá para o Centro de Cultura Social. Eu não sei como começou, mas a gente começou a frequentar o CCS.

O CCS tinha sido fundado pelos anarco-sindicalistas derrotados nos anos 30. Quando perderam a hegemonia do movimento operário para os comunistas, optaram pela via de centros de cultura. E o Centro de Cultura Social de São Paulo sobreviveu à ditadura Vargas, do Estado Novo, e depois à ditadura militar, de 1964. Foi aberto e fechado, aberto e fechado, e continuou reunindo aqueles velhos militantes.

Os anos de 1987 e 1988 foram o encontro da nossa geração. Éramos moleques, tínhamos 14, 15 anos, alguns eram mais velhos, mas basicamente adolescentes e punks, com esses velhinhos de 70 anos mais ou menos, que tinham militado no movimento operário, participado de toda a história da construção dos anos finais da hegemonia do movimento operário anarquista. Foi um encontro tenso, porque a gente vinha da contracultura e eles vinham do movimento operário. Eram aqueles senhorezinhos de boné e suspensório encontrando os punks da periferia de São Paulo.

Como você vê hoje essa organização, até mesmo dos anarquistas e dos punks, em relação aos movimentos sociais e dos trabalhadores?

Pablo Ortellado: Eu acho que tal passado deu origem, nos anos 90, a uma série de outras coisas. O punk foi a primeira experiência no Brasil de convergência entre contracultura e ativismo político. Nos anos 60, tivemos a contracultura, meio hippie, que estava completamente desassociada da militância social. Eram grupos antagônicos que tinham profundas divergências, tirando um ou outro caso de gente que circulava pelos diferentes lados. Mas foi muito raro quem tivesse transitado pela contracultura e a militância social nos anos 60 e 70.

No punk, quando houve a aproximação no final dos anos 80, foi a primeira vez que a gente teve um movimento contracultural de verdade. O punk é o que o hip hop foi nos anos 90 e no começo dos anos 2000, pelo menos na periferia de São Paulo. Eram movimentos muito amplos, muito disseminados e se politizaram (ao menos uma parte). Essa parte terminou influindo e contaminando o resto. Teve uma parte que realmente se politizou, virou militante sindical e tal. Terminou assim, transbordando para o resto da cultura punk. Politizou-se e foi para a esquerda e o anarquismo.

Nos anos 90, ou no final dos anos 80, o movimento também se rompeu por uma questão de classe. A cena hardcore começou a se constituir. Nos anos 80, tinha uma casa de show chamada Dama Xok, que começou a criar um pequeno circuito da classe média de hardcore, diferente dos circuitos dos punks, que passavam mais pelo lado ativista. Tinham os circuitos de shows na periferia e um circuito mais ativista, que ficava em torno do coreto da Praça da República. Esses dois circuitos se separaram. Houve uma separação de classe, não tão precisa assim, mas predominava a classe média no circuito hardcore e a periferia no circuito punk.

De toda forma, a politização terminou afetando os dois grupos. Mesmo com a cisão, os dois grupos se politizaram à esquerda. Isso gerou, nos anos 90, vários efeitos de iniciativas políticas. Às vezes só um desses grupos, às vezes misturando os dois. Da origem a um meio ativista, atingiu-se uma maturidade no ano 2000. Durante os anos 90, tem um período de construção, uma formação de grupos como a juventude libertária, o início das campanhas de apoio à formação dos grupos de solidariedade aos zapatistas, já nos anos 90. Amadureceu com o movimento antiglobalização entre 1999 e 2000.

O quanto esse movimento foi importante para a criação do conceito de midiativismo?

Pablo Ortellado: Tem uma pré-história no punk, com a questão dos fanzines, junto com os movimentos de rádios livres. Há a constituição das rádios livres e dos fanzines na evolução da imprensa alternativa, porque ela rompe com a ideia de simplesmente fazer um veículo diferente em termos de conteúdo, compromissos com as grandes empresas, financiadores etc.

O que tanto as rádios livres quanto os fanzines têm é a ideia de que cada um deve fazer sua mídia e retirar a mediação jornalística. Não tem mais, seja com os fanzines, a cultura punk ou as rádios livres, a ideia de algum profissional dos meios de comunicação fazer a comunicação, falar por você, pelos movimentos, em nome do sindicato... São as pessoas falando diretamente. O ideal punk “faça você mesmo”, cada um tendo o seu fanzine. Todos nós da geração dos anos 80 tínhamos fanzine. Tinha banda e tinha fanzine. Fazia parte da cultura punk.

Nos anos 90, vimos isso também no movimento de rádios livres, que começou nos anos 80 com a ideia. Acho que o exemplo mais desenvolvido aqui no Brasil é a rádio Muda de Campinas, na Unicamp. Você entrava lá (foi fechada agora, não sei se reabriu), assinava uma lista e ganhava uma hora de programação por semana. Assim você fazia o seu programa. Todo mundo ao mesmo tempo escutava a Rádio Muda e fazia a Rádio Muda. Sem a ideia de ter um produtor, um jornalista, um mediador que fale em nome das pessoas. As pessoas falam, as pessoas escutam. Penso que isso está na gênese.

Na origem da interface entre a cultura e o ativismo aqui no Brasil, vimos nascer tal ideia, mas acho que foi amadurecer mesmo com o Centro de Mídia Independente. A primeira reunião deve ter sido em fevereiro de 2000, quando o fundamos. Foi fundado em Seattle, por volta de setembro e outubro de 1999, e uns quatro meses depois fundamos o Coletivo Brasileiro Centro de Mídia Independente. Acho que é um dos primeiros casos no midiativismo.

Estava relacionado com a iniciativa do movimento antiglobalização, portanto.

Pablo Ortellado: Completamente. Porque nos anos 90 se fundaram várias redes de solidariedades internacionais, principalmente por conta do zapatismo. Houve a realização dos encontros pela humanidade contra o neoliberalismo. O primeiro foi em Chiapas, o segundo foi em Barcelona e o terceiro foi em Belém. É nesse processo que se forma o movimento antiglobalização, a ideia de fazer um movimento global que unifique os movimentos sociais do mundo contra os encontros de cúpulas que estavam promovendo o neoliberalismo, os encontros do FMI, do Banco Mundial, da OMC. Surgiu no segundo encontro zapatista, que foi entre 96 e 97, em Barcelona. Foi feito um segundo encontro na Suíça, acho que esse, sim, em 97. A partir daí, surge a ideia de fazer manifestações simultâneas contra os encontros de cúpulas. Teve uma em 1997, mas foi em 18 de junho de 1998 o primeiro experimento verdadeiramente global. Tinha um desses encontros de cúpula e conseguimos organizar de maneira simultânea umas 30 cidades no mundo para se manifestarem.

Isso é raro hoje em dia, temos mobilização por direitos ou contra algo especificamente, mas não contra um modelo, o sistema como um todo. Você vê que, talvez também por uma despolitização, faltem métodos de manifestações, um norte, como, por exemplo, o movimento antiglobalização tinha?

Pablo Ortellado: Eu acho que teve um movimento pendular. Houve vários movimentos que reagiram e foram para questões locais por conta de certas dificuldades, ou do que eles entendiam como limitações do movimento antiglobalização. Porque vários dos movimentos que vemos agora, da década de 2010, são de ativistas veteranos do movimento antiglobalização.

Mas não estou entre aqueles que acham que fazíamos no movimento antiglobalização uma posição sistêmica abstrata. Eu acho que era muito concreto. Enfatizávamos nas nossas campanhas e estávamos antecipando perigos de que havia uma parte do processo de liberalização econômica que já tinha tido efeitos. Por exemplo, no Brasil tínhamos passado pelas privatizações do governo Collor e depois no governo Fernando Henrique, e elas já tinham sido sentidas pelas pessoas. Nos anos 2000, tivemos a reforma da previdência, com perda dos direitos trabalhistas. Havia uma dimensão concreta que já tinha aparecido.

Lembro que fizemos uma campanha muito forte no Brasil contra a ALCA, desde 1999, mas, principalmente, a partir do ano 2000. Era muito de antecipar, e a gente olhava o que tinha acontecido no NAFTA, o que tinha acontecido com o Canadá e o México quando firmaram acordo de livre comércio com os EUA. Houve um processo de quase conseguir a privatização dos Correios porque era entendido que no contexto das regras de livre comércio, trazidas pelo NAFTA, um serviço público era concorrência desleal com os serviços privados. Houve todo o processo da constituição das maquiladoras do México, de desregulamentação econômica, fazendo com que o capital fosse pra onde tivesse a força de trabalho de mais baixo preço e se baixassem todos os padrões de proteção ao trabalho. Fazíamos propaganda dos efeitos, desses processos de liberalização econômica em outros países, mas de uma maneira muito concreta.

Assim, toda a nossa campanha contra a ALCA foi construída mostrando os efeitos sociais, de proteção ao trabalho, de proteção ao meio ambiente, de privatização das empresas estatais, que são patrimônio coletivo. Não acho que fazer oposição ao capitalismo internacional era uma coisa abstrata. A gente fazia uma posição concreta, focada nos efeitos concretos que esses acordos de livre comércio já tinham em outros lugares do mundo.

No entanto, houve muita gente que entendeu que a campanha não conseguiu crescer na medida em que deveria ter crescido, que nosso movimento enfrentou certos limites por conta do caráter abstrato, por não ser direto, não ser muito concreto, e várias dessas pessoas migraram para pautas muito específicas. Depois vimos o caso da Argentina. As pessoas que estavam no movimento foram apoiar os piqueteiros. O movimento piqueteiro sofreu, digamos, a convergência dos ativistas que chamávamos de movimento global, do final dos anos 90. Aqui, vimos isso no MPL, muito constituído por gente que veio do movimento antiglobalização.

Você não acha que movimentos como o MPL têm uma pauta que dialoga mais fácil e didaticamente com um público maior, e tendem a ter uma cobertura da mídia mais difícil de ser deturpada, por se tratar de uma pauta concreta?

Pablo Ortellado: Eu não acho. Não mesmo. Do ponto de vista estritamente político, houve muita dificuldade no nosso movimento, tudo bem. A gente era contra os acordos de livre comércio. O que significava? Éramos contra a ALCA e as negociações que estavam acontecendo na OMC. Como a gente demonstrava isso? Fazendo mobilizações de massa simultâneas no mundo inteiro, tentando impedir a realização das negociações. Mas qual era a nossa demanda concreta? Não tinha uma demanda concreta. A demanda concreta era puramente negativa. E não se deu um passo adiante. Organizávamos manifestações pra não dar um passo adiante. Mas tinha muito pouca negociação concreta... A gente não conseguia traduzir a indignação, digamos, em uma ação pragmática específica. Quem terminava fazendo um pouco disso em nome dos manifestantes eram umas ONGs. Mas elas não estavam muito empoderadas, não eram muito legitimadas pelo movimento.

É totalmente diferente, por exemplo, do Movimento Passe Livre. O MPL tem uma pauta muito concreta, uma reinvindicação muito direta. Embora por razões da sua própria história, normalmente não negocia sua pauta quando há o aumento da tarifa, pois luta pela redução do aumento da tarifa. Essa demanda é muito mais visível e mais concreta do que era a nossa.

Porém, os meios de comunicação não reagem de uma maneira diferente. O MPL, em junho, foi massacrado até o dia 13. Eu fiz o levantamento da cobertura para o livro “Vinte centavos”. Fizemos um tratamento bem sistemático da cobertura de imprensa nos três jornais nacionais (Folha, Estado e Globo), nas quatro principais revistas semanais e nas TVs. O MPL ganha todas as capas desde que começa a campanha contra o aumento. Todas negativas. Ele apanha de todos os lados. Não há nenhuma brecha. Não há ninguém olhando com a menor simpatia. Pra dizer que não, no próprio dia 13 de junho, a Folha deu um texto no ‘Tendências e Debates' para o MPL. Só. O MPL falando por si mesmo. O resto é só cobertura crítica. Obviamente, depois do dia 13 há uma virada.

Eu não vejo que o fato de ter uma demanda clara gere outro tipo de reação dos meios de comunicação. Talvez seja exatamente o contrário. Quando olhamos para os meios de comunicação dos movimentos antiglobalização, uma boa parte da cobertura era favorável a nós. Talvez o fato de ser meio abstrato e não representar um perigo muito imediato tenha feito com que uma parte (não toda a imprensa) apoiasse. Quando a gente olha a cobertura dos meios de comunicação, dos articulistas, muita gente via o movimento com simpatia. Muito mais do que viu o MPL até a primeira metade de junho.

Você acha que a cobertura alternativa das manifestações também teve influência para que a mídia mudasse tão radicalmente?

Pablo Ortellado: Acho que teve alguma influência, mas não foi uma influência decisiva. O que aconteceu é que o MPL de São Paulo está há dez anos tentando reproduzir uma revolta de transporte em São Paulo. Desde Salvador em 2003, depois Florianópolis 2004, passando por Goiânia, Belém, Vitória, tivemos dez anos de revoltas nos transportes, sempre com a mesma característica: quando aumenta a passagem de ônibus, jovens urbanos, normalmente da periferia, tomam as ruas de maneira mais ou menos espontânea, bloqueando as ruas e pressionando pela redução do aumento das passagens. Em várias cidades do Brasil, isso redundou em redução das passagens. Mais notoriamente em Florianópolis, em 2004 e 2005. Mas em outras cidades também.

Portanto, tem um fenômeno social recorrente e regular nas mobilizações por transportes. O MPL sabia que era um movimento social vivo e estava tentando organizar a reação espontânea da juventude contra o aumento dos preços dos transportes. Quando o MPL organizou a campanha de 2013, falou: “dessa vez nós vamos fazer acontecer”. Mudou um pouco a estratégia da campanha de 2011, pensando em atos muito fortes, muito radicais, que acontecessem com pouco intervalo de tempo. Ao invés de fazer uma vez por semana, fazer a cada dois dias, mais ou menos. E tal mudança teve um impacto grande no sucesso da campanha.

O que tem a ver com os meios de comunicação? A ação do MPL expressa uma insatisfação muito grande da população com o preço e a qualidade do transporte. Como se sabe que ela expressa? Porque faz dez anos que acontecem revoltas populares de uma maneira regular em todo o território nacional, em grandes cidades brasileiras, embora ninguém tivesse dado atenção até acontecer em São Paulo e no Rio.

Mas o MPL estava dando atenção porque sabia que havia um processo espontâneo de oposição ao aumento das passagens. Quando começou a fazer atos grandes, intensos e com curto espaço de tempo, mesmo que os meios de comunicação cobrissem de uma maneira negativa, as pessoas liam e diziam: “baderneiros, estão fechando as ruas, não representam ninguém, é coisa do PSOL, do PSTU”, enfim, o discurso dos meios de comunicação. Por um lado, elas escutavam isso, por outro lado, falavam: “tem gente indignada, tem gente indignada”. Eles conseguiram colocar todos os dias na capa dos jornais informação sobre as manifestações, e na imprensa televisiva também. As pessoas viam o Jornal Nacional (estamos falando do jornal visto por dezenas de milhões de pessoas todos os dias) e diziam: “tem gente indignada, tem gente indignada”.

No dia 13 de junho, antes da repressão violenta da polícia, a Folha de S. Paulo fez uma pesquisa de opinião na cidade – antes da violência. Os dados foram processados depois. Era uma quinta-feira e terminaram sendo publicados num sábado. Mas a pesquisa feita na quinta-feira deu que ¾ da população apoiavam a campanha contra o aumento. Na verdade, o jogo já tinha virado antes da repressão policial.

O que aconteceu naquela repressão do dia 13? Os meios de comunicação se colocaram contra os atos, em peso, de uma maneira organizada. Tenho dificuldade de achar que foi espontâneo o editorial do Estado de S. Paulo, o editorial da Folha de S. Paulo, o editorial do Jornal Nacional, e o Boris Casoy, na Band, os quatro veículos juntos, pedirem uma intervenção dura da polícia. O apresentador olhando para a câmera e pedindo uma intervenção da polícia para conter os “baderneiros” do MPL.

Aí a Folha de S. Paulo fez a pesquisa naquela noite, independentemente da violência da polícia. Houve a violência da polícia, mas, quando se começou a processar a pesquisa de opinião, os meios de comunicação descobriram que eles pediram para bater com rigor, para uma polícia que já é descontrolada, já não respeita os direitos humanos, totalmente sem controle. Eles autorizaram ainda mais a fazer o que quisessem. Eles pediram para a polícia bater sem dó num movimento social que tinha apoio de ¾ da população de São Paulo. Isso gerou uma reorganização completa do debate político, porque eles tinham feito uma enorme cagada. Pediram para bater naquilo que tinha um enorme apoio social.

Na sexta, no sábado e no domingo (dias 14, 15 e 16 de junho), vimos uma completa reorientação dos meios de comunicação, que advém do entendimento do fato de que a campanha era extremamente popular e tinha o apoio massivo da população. Quando estamos falando de ¾ de apoio da população de São Paulo, é muito mais do que têm o Geraldo Alckmin, Fernando Haddad, enfim, qualquer governo, qualquer instituição da cidade.

Nos protestos contra a Copa, em 12 de junho, na zona leste, vimos uma grande repressão, inclusive aos metroviários, que também faziam um ato em seu sindicato. Nos protestos seguintes, vimos mais violência e até o impedimento deles. Como você enxerga esse cenário, especialmente em relação à polícia e em ocasiões de menor visibilidade?

Pablo Ortellado: Sobre a visibilidade, o que aconteceu no ano passado foi totalmente fora do padrão, não acontece de forma regular. Pesquisas mostraram que 5% da população do país estiveram nas ruas. Um em cada vinte brasileiros. É um nível de mobilização pré-revolucionário, nenhuma sociedade se mobiliza nesse patamar regularmente. Esperar que os protestos de junho de 2013 voltem é completamente ilusório. Foi coisa do tipo Maio de 68, uma explosão que não se sabe de onde vem, como veio, muito excepcional. E medir qualquer coisa naqueles parâmetros é injusto. Não vai acontecer de forma regular.

Sobre a Copa, houve muito erro tático e estratégico dos movimentos que estavam se organizando para protestar. Eles tinham tudo para ganhar volume, tudo. As condições eram muito favoráveis. Até muito poucos dias antes de a Copa começar, metade da população estava com sentimentos contrários à Copa. Mas não tiveram a capacidade de organizar a insatisfação e dar a ela expressão política sólida.

Correio da Cidadania: Mas quais erros teriam sido esses, em sua opinião?

Pablo Ortellado: Não é fácil dizer, não gosto de falar muito do movimento de que não participo ativamente. É injusto. Mas tinha de ganhar legitimidade social, conquistar outras forças políticas, mostrar presença de rua. É difícil falar de fora, pois fui apenas participante de algumas manifestações. Houve um racha entre o Comitê Popular da Copa e o pessoal do ‘Se não tiver direitos, não vai ter Copa'.

Quando o Comitê começou o processo de mobilização de rua, parou. No dia 15 de maio, o ato deles foi dispersado muito rapidamente. Eles não deviam estar preparados para isso, pois mal teve 5 minutos de manifestação e deve ter sido muito frustrante. O Comitê teve um processo político de anos abortado e não sei exatamente qual entendimento teve para optar em parar com os atos de rua. Era o movimento que mais tinha legitimidade para fazer a mobilização. Não sei se entenderam que não tinha possibilidade de resposta, de converter os protestos em pautas concretas, ou se o nível de repressão estava grande demais para o que podiam conseguir.

Mas o fato é que tais movimentos não conseguiram organizar a insatisfação que estava claramente presente na sociedade brasileira. E podia ter se expressado em um nível mais alto de mobilização.

E diante do atual cenário, que também está repleto de greves, por todo o país – metroviários, rodoviários, garis, professores –, não tem faltado união e diálogo mais efetivos entre a classe trabalhadora e os movimentos sociais, a fim de aumentar esse nível de mobilização que você mencionou?

Pablo Ortellado: As coisas são interligadas. Boa parte das greves que vimos foram feitas contra as direções sindicais, pelo menos metade, eu diria. Isso é um legado de junho. Embora várias pessoas não vejam assim, junho foi uma vitória. Pesquisa da Folha mostrou que 70% das cidades com mais de 200 mil habitantes reduziram a tarifa. É uma vitória absurda. Em termos materiais, é quase um Bolsa-família. Conseguido num golpe, com uma semana de mobilização. Em um monte de cidade pequena, de interior, com 10 ou 20 mil habitantes, a população cercou e ocupou suas câmaras municipais para pressionar pela redução. E conseguiu. Isso é um aprendizado muito forte. Quem mora em São Paulo e foi às manifestações, quando passava o bilhete único e novamente via ‘3 reais', sentia: “eu que consegui”. Tem um efeito psicológico e de empoderamento da luta social muito forte.

Tivemos dois fenômenos. O da mobilização sindical contra as lideranças, por meio de métodos de mobilização direta e em alguns casos ‘greves selvagens', isto é, contra as direções. E teve um processo de ocupações que está muito além do MTST. O movimento é a expressão mais visível, mas a periferia teve um boom de ocupação urbana que não víamos desde os anos 80. É muita ocupação, pra todo lado. E acho que advém do sentimento de empoderamento e da vitória que foi junho de 2013.

O Brasil é muito grande, mas, olhando para São Paulo, ainda bem que o MTST conseguiu combinar o fenômeno de ocupação urbana com passeata de rua, que chamou muita atenção da mídia e deu visibilidade ao processo. Porque poderia ter acontecido que tal processo da periferia ficasse invisível, assim como foi invisível por 10 anos a luta pelo transporte. Está ocorrendo um processo de mobilização na questão da habitação, assim como no setor sindical, em diversas categorias. E vejo ligação com o que houve em junho.

As ações de tomada de rua de forma mais universal (até porque o transporte é tema universal), que transcendem determinada categoria, ensaiaram uma convergência com a movimentação sindical, no caso da greve dos professores do Rio de Janeiro. Também acho que teve alguma falha de não se entender a potência de convergência entre as duas tendências. No Rio, a greve dos professores teve passeata com 100 mil. Não têm 100 mil professores no Rio. Era a população aderindo ao movimento dos professores. Foram as maiores manifestações do país após junho. E não conseguimos reproduzir tal fenômeno. Os metroviários ensaiaram no final de sua greve, com apoio maior da população, mas não houve sequer tempo para ver o resultado.

No entanto, pelo jeito a repressão veio para ficar, a ponto de vermos atos que são simplesmente impedidos pela polícia de ocorrerem, e com posturas dos políticos que avalizam totalmente esse nível de arbitrariedade, a exemplo do governador de São Paulo (entre outros).

Pablo Ortellado: Na questão dos metroviários, entrou a Copa. Primeiro que eles aproveitaram o momento e a conjuntura pra ganharem visibilidade, ameaçando entrar em greve na véspera da Copa. Isso assustou o governo, que precisava garantir a mobilidade dos torcedores para o estádio, visto que os trilhos são o melhor meio de acesso. Mas, por outro lado, a Copa autorizou o regime de exceção que estamos vivendo. A repressão e demissão dos metroviários é absurdamente inconstitucional. E vemos de forma recorrente em todo o Brasil, não só em São Paulo. Manifestação em dia de jogo não podia ocorrer, nem concentração. Se tivesse concentração, não poderia andar. Foi assim em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, sempre seguindo o mesmo roteiro.

Se não é explícito, há um acordo de intenções e pontos de vista entre os meios de comunicação, judiciário, Ministério Público e todas as esferas de governo, isto é, os dois grandes polos do debate político nacional: PT e PSDB. Eles estão de acordo. Nisso, há um silêncio monumental pela suspensão do direito civil mais básico, de reunião e livre expressão. Tal direito foi suspenso no país em dias de jogo. Procure na Globo, Estadão, Época... Não saiu nada sobre isso. E provavelmente trata-se do legado mais perigoso da Copa.

Se o PT, principalmente, por ter raízes no movimento social, pensa que suspender tais direitos, excepcionalmente, não vai deixar marcas profundas na sociedade, está muito enganado. Viveremos durante muito tempo sob a sombra desse regime de exceção. Porque as instituições vivenciaram a experiência de que podem suspender direitos civis e nada acontece. Você acha que é só na Copa, que depois voltaremos a um regime de normalidade? Não vamos voltar à normalidade! Sempre que houver a menor ameaça de mobilização social, teremos suspensão de direitos básicos. Porque as pessoas das instituições sabem que podem fazer isso de forma indolor, inócua, e nada acontece. Vamos viver dias muito ruins por conta do que aconteceu na Copa.

A única manifestação que não foi praticamente proibida, nesses últimos dias, foi a do MPL, em 19 de junho. Gostaríamos que você comentasse como foi esse dia, em que black blocks tentaram agir por conta própria, atacando o que consideram símbolo capitalista, e membros do MPL tentavam impedi-los, entrando em clara divergência. Como é o movimento tentar impedir o black block de agir à sua maneira e como esse grupo se desenvolveu?

Pablo Ortellado: Do jeito que eu falo, parece até que sou um grande defensor do black block. Acontece que eles foram massacrados. No meu histórico ativista, sempre fui muito crítico da tática black block. Mas sofreram um ataque tão duro, visando deslegitimá-los como atores políticos, que achei importante defender.

Eles começaram a atuar na Alemanha, como espécie de grupo de autodefesa do movimento autônomo alemão. O que não é novo, dado que todo movimento de rua sempre teve alguma tática de autodefesa. E no caso alemão a denominação se deu até na brincadeira, por conta da característica visual dos atos de lá. Eram manifestações organizadas em blocos. Havia o bloco verde, dos ambientalistas, o bloco vermelho, dos sindicatos e do Partido Comunista. Por analogia, tinha o bloco negro, do movimento autônomo. Eles não inventaram nada, apenas desenvolveram a tradição de praticar a autodefesa, fechando os braços para impedir que agentes provocadores interferissem nas manifestações e criassem tumulto ou conflito. Ou faziam um bloco pra enfrentar a polícia e a manifestação passar.

Esse black block foi ressignificado nos protestos de Seattle. Advém de um debate interno do movimento norte-americano, que debatia as táticas gandhianas de desobediência civil não violenta, um paradigma desde que o movimento negro as utilizou com sucesso na luta por direitos civis e o fim da segregação. O movimento negro usava a desobediência civil não violenta e resistência passiva. Por exemplo, não podiam entrar na lanchonete, por lei, mas mesmo assim entravam, fazendo o chamado sit-in . Depois, a polícia vinha cumprir a lei, de forma violenta, e os manifestantes não reagiam. A reação violenta da polícia, batendo em manifestantes que defendiam um princípio de justiça muito claro, flagrante, chocava a opinião pública. Foi o que Gandhi fez na independência da Índia e Luther King retomou nos EUA pra lutar pelo fim da segregação racial. Foi extremamente bem sucedido, os EUA ficavam chocados de ver a polícia batendo em manifestantes que lutavam por direitos de igualdade supostamente previstos em sua Constituição. Isso virou paradigma nos EUA e todos os movimentos dos anos 70, 80 e 90 utilizaram a desobediência civil não violenta nos moldes de Gandhi e Luther King.

Em 1999, houve um debate sobre isso dentro do movimento que viria a ser chamado de antiglobalização. E o grupo do movimento ambiental já avisara: tal forma de desobediência civil não funcionava mais, há tempos. Porque os meios de comunicação não cobrem a violência policial. Se não cobrem, não tem como a opinião pública ficar chocada com ataques a manifestantes que defendem princípios de justiça. Como a mídia não cobre, não faz sentido persistir na tática. A polícia brutaliza, tortura e até assassina militantes e a imprensa não dá a mínima. Se não dá a mínima, a tática perdeu sentido.

Esse debate foi feito pelo grupo que originou o black block de Seattle. Decidiram fazer um ato de desobediência que atacasse o coração do sistema jurídico e da defesa da propriedade privada. Com quebras de propriedade e destruição sistemática e seletiva, como solução para recuperar a atenção dos meios de comunicação. Foi a grande controvérsia do movimento nos anos 90. Ativistas e movimentos da ação direta ficaram putos na época. Mas de fato partiu-se pra destruição de bancos e outros grandes símbolos do capitalismo, poupando o pequeno comércio, e a mídia voltou a dar atenção a certos protestos.

No meu entender, qualquer tática tem de ser colocada no plano da estratégia, do movimento. Claro que pode fazer sentido ter um grupo que faça frente à repressão policial. Mas é caso a caso, precisa saber aonde, como, quando, por que... Esse ataque principista, de ser contra ou a favor do black black, como se fosse um grupo definido de pessoas, não é o ponto. Mas do ponto de vista de princípio, o fato de serem pessoas mascaradas, e qualquer um poder entrar, deixa uma vulnerabilidade muito grande, é muito fácil infiltrar alguém.

Diante do que você disse sobre o tamanho dos protestos de junho, que em condições normais não voltarão a ocorrer, e pelo fato de tal momento ter desencadeado novas lutas, até contra as direções, você concorda com a tese de que tivemos um crescimento muito mais qualitativo do que quantitativo nas mobilizações, através de lutas setorizadas, mas também mais frequentes e aguerridas?

Pablo Ortellado: Não devemos medir o que estamos vivendo por junho. Devemos medir por maio de 2013. O que estamos vivendo é outro patamar de mobilização social. Quem estava nas ruas antes de junho de 2013 sabe muito bem que estamos em outro patamar. Junho foi extraordinário, não vamos revivê-lo tão cedo. Devemos medir pelo que tinha antes. E o que aconteceu, na verdade, foi uma espécie de correção de rumo em relação à história do PT.

O PT é um partido com histórico nas mobilizações, é o partido dos movimentos sociais. Muita gente pensa que no Brasil as pessoas não se mobilizam, mas é uma ideia completamente falsa. Mobilizam-se muito. O que vivenciamos no fim dos anos 70 e começo dos anos 80 foi um padrão elevadíssimo de mobilização. A sociedade se desmobilizou porque optou pela via institucional. O PT não é um partido comunista ou socialista clássico, que de forma leninista se infiltra nos movimentos e tenta dar-lhes linha e orientação política. Pelo contrário, é um partido de movimentos sociais que se federaram e fundaram um partido. Em determinado momento esse partido resolveu optar, fortemente, pela via institucional. Ganhar eleições de prefeito, governador, presidente. Conquistar o poder político. Essa opção, do decorrer dos anos 80, principalmente do final da década, foi altamente desmobilizadora. Uma opção pela luta institucional. E tudo que vimos nos anos 90 foi um processo de declínio da mobilização, que estava em patamar muito elevado. Nos anos 2000, tivemos um patamar muito baixo, por conta da opção do PT.

Aconteceu que os jovens dos anos 90 e 2000 tiveram de reinventar o movimento social, de maneira completamente descolada do PT. Pois nos anos 90 havia basicamente o MST, fora isso pouca coisa. Foi preciso reconstruir os movimentos fora da órbita do PT. Não é à toa que junho tenha começado com o MPL, um movimento de jovens que reconstruiu o ciclo de mobilização por fora do PT. Tais movimentos estavam ocultos e uma das coisas mais surpreendentes, para mim, é ver as pessoas chocadas em ver uma luta contra a tarifa ganhar a dimensão que ganhou. Mas estava lá há 10 anos. Se olharmos o que aconteceu em Florianópolis, entre 2004 e 2005, teve mobilização maior que a de junho, proporcionalmente à sua população, da menor capital do Brasil. Tinha 5% da população na rua contra o aumento. Isso acontecia em Goiânia, Salvador, Belém, mas ninguém prestava atenção. Se não for em São Paulo ou Rio, dizem que é “fenômeno local”. Mas fenômenos locais em todo o território nacional têm uma sistematicidade, expressam algo que ocorre na sociedade.

E ninguém prestava atenção, não apenas os meios de comunicação. Nenhum partido incorporou a pauta, nem PT, nem PSOL, nem PSTU. Ninguém na esquerda deu centralidade à pauta por transporte, embora já fosse um fenômeno social recorrente. A universidade tampouco prestou atenção. Faz 10 anos que acontecem tais lutas e existem apenas três teses dissertativas a respeito de um fenômeno social dessa magnitude. Aí, quando acontece, ficam perguntando “nossa, de onde veio?”. Depois vemos as explicações mais estapafúrdias de sociólogos tentando analisar. Pô, veio de onde veio, ou seja, do transporte. Porque é assim mesmo, começa pequeno e de repente explode. Estava acontecendo há 10 anos e ninguém prestou atenção. É um fenômeno novo, uma espécie de reconstrução do movimento social de maneira desvinculada do ciclo que culminou no Partido dos Trabalhadores.

Voltando à pergunta, penso que os meios de comunicação, academia e partidos estão olhando para novos fenômenos sociais, que estão além daquele ciclo do movimento de habitação, do movimento de carestia, dos sindicatos dos anos 70 e 80, do próprio MST...

O que pensa do decreto 8.243/14 , que versa sobre a participação popular em instâncias de decisão, através de conselhos? Pensa que o PT pode vir a tentar recuperar o terreno perdido no movimento social?

Pablo Ortellado: Não sei se é recuperar. Está na gênese do PT o participacionismo, faz parte do DNA do partido. Se olharmos, a origem do PT e esse novo ativismo social não são dois fenômenos desligados. Fazem parte da mesma coisa. Mas o PT sofreu o desvio de rota que falamos. Quando olhamos, o movimento nascido dos anos 70 em diante é muito diferente dos anos anteriores. Quem conhece militantes mais antigos sabe que os movimentos sociais pré-anos 70 são de natureza muito diferente. Eles não eram participacionistas, não defendiam a democracia como forma de organização do movimento social. E o PT já está inserido no contexto seguinte, em seus primórdios. O PT é um fenômeno mundial, porque é um partido de movimentos sociais que se institucionalizou de forma muito abrupta. E também vitoriosa, porque conquistou o poder político. A única coisa parecida, em minha visão, é o Partido Verde alemão, de trajetória parecida.

Mas em lugares onde o movimento social não optou pela via institucional, vemos que foi amadurecendo. Primeiro é participacionista. O PT é muito assim, tem a ideia de democracia participativa, de tudo passar por assembleia, conquista de bases, o que antes se chamava basismo. Vemos outros movimentos sociais do mundo passarem por tal processo. Depois se radicalizam, se convertem em crítica ao leninismo, à ideia de que as assembleias devem ser de disputa por corrente, o que é ruim para o movimento. Isso no sentido de ser preferível optar por movimentos menos confrontativos, em favor de processos orientados ao consenso. Daí vem a crítica ao leninismo, em favor de um processo no qual se defendam as assembleias gerais permanentes como forma de gestão dos movimentos.

Se os movimentos sociais que constituíram o PT não tivessem entrado nas instituições de forma tão abrupta, conforme optaram, teriam passado por esse processo de radicalização democrática, teriam completado o processo de aprofundamento democrático e se encontrado com o novo ativismo. Fariam parte, digamos, do mesmo processo. Mas tal caminho foi interrompido pela opção institucional do partido. E foi mais ou menos resgatado pela nova geração. Não são coisas completamente diferentes ou dois processos diferentes. Acho que fazem parte de um processo de aprofundamento democrático dos movimentos sociais, que vem desde os anos 70.

No atual momento, considera possível convergir a via institucional com as lutas dos movimentos sociais, de modo a unir forças entre ambas as frentes?

Pablo Ortellado: O que eu gostaria (para além da minha opinião) que saísse da atual experiência, e vejo condições totais de fazermos isso no Brasil, é uma retomada dos movimentos sociais, no sentido de equilibrarem-se com o poder político. Entendendo que os movimentos precisam converter a mobilização social em transformação institucional. Porque a coisa passa por isso. Redução de tarifa: passa por processo institucional. É decisão de governo. Há uma certa leitura no novo movimento social de que basta gritar para acontecer. Não é verdade. No lado de dentro, na coxia do palco, acontecem vários processos em que o movimento precisa intervir. Mas para intervir não precisa se institucionalizar, não precisa eleger deputado, ninguém precisa virar deputado ou prefeito. Precisa de interlocução, mais ativa e independente, com o poder institucional.

Eu gostaria que o resultado do atual processo fosse duplo. Primeiro, o fortalecimento da mobilização social, que esvaziamos durante os anos 80 e principalmente nos anos 90. Esvaziamos as ruas, a mobilização direta, o processo de greve, a reivindicação de rua. Tudo foi completamente esvaziado. Que o processo de retomada das ruas continue se fortalecendo. Mas, por outro lado, que se fortaleça de maneira a converter a insatisfação e mobilização em mudanças concretas, aprendendo que se optarmos por uma via institucional direta matamos a mobilização. No meu entender, o que devemos tirar como legado é um processo de construção de mobilização social que saiba dialogar de maneira independente com o poder político. É um equilíbrio muito difícil.

O PT foi fundado pelo movimento social e até muito recentemente partido e movimentos eram praticamente a mesma coisa. Isso se refletia no governo, em um jogo puramente institucional. Começamos a esboçar um jogo de outra natureza, de mobilização social e instituições, sem identidade entre ambas. E nossas referências de movimento que dialoga com o poder político de forma independente são muito antigas, não temos mais militantes que vivenciaram isso.

O MTST é o exemplo mais próximo do que você fala? Alguém, seja partido ou movimento, tem demonstrado capacidade de aglutinar esses dois polos?

Pablo Ortellado: Acho que há avanços. O MTST e o MPL são dois exemplos diferentes. O MTST não é movimento de tipo tão novo. Tem uma forma de organização muito vertical. Não tenho acompanhado de perto, mas já acompanhei. Acabou de demonstrar de forma brilhante a capacidade de mobilização de rua sem se confundir com o poder político, conseguindo um conjunto de vitórias espetaculares. A última campanha do MTST foi muito bem desenhada e muito bem sucedida. Já o MPL, totalmente de tipo novo, horizontal, de base, antiinstitucional, também tem muito mais capacidade, em relação aos movimentos anteriores, de converter a insatisfação que expressa em mudança institucional. Tem acumulado conjunto de vitórias bastante expressivo. Mas tem, pela sua própria história, muita dificuldade de dialogar com as instituições. Pelos bons motivos.

O MPL foi fundado muito por conta da experiência da Revolta do Buzu, de Salvador, em 2003. Um levante espontâneo de jovens, por conta de um aumento de 20 centavos. Organizaram-se de maneira horizontal, assembleária, tomaram as ruas, começaram a bloqueá-las durante várias semanas, estrangulando a cidade e pressionando pela redução das passagens. Mas não tinham uma expressão política, um movimento, lideranças constituídas. O poder público não sabia com quem negociar. E começou a negociar com a UNE, que por sua vez passou outra agenda, outra pauta, que não era a revogação das passagens. O movimento se sentiu traído e daí nasceu o MPL. De uma experiência, digamos, derrotada da Revolta do Buzu, se constituiu como expressão política da revolta espontânea dos jovens contra a tarifa. E que busca ser fiel à reivindicação, para não trair o movimento. Como não trair o movimento? O MPL tem uma pauta única: redução das passagens.

Na revolta de 2013, o prefeito falou que o movimento era intransigente, não queria negociar. Mas o MPL não pode negociar, é da sua natureza. Ele foi concebido para não negociar, porque a negociação de tipo antigo era subordinar uma agenda de movimento a uma agenda de partido. E ele nasce como organização política que só tem a agenda do movimento, por isso não quis falar de qualquer outro assunto que não fosse transporte. A agenda do MPL é quando tem aumento ou redução do aumento. E quando não tem aumento, é lutar pela tarifa zero. De onde o MPL extraiu sua agenda? Das ruas, é uma reivindicação espontânea, demonstrada empiricamente pelas mobilizações sociais que já estão no território nacional inteiro há 10 anos. Por um lado, o MPL não dialoga, o que é verdade. Mas, por outro lado, não dialoga por razões muito compreensíveis, que explicam sua própria natureza política, de não ser um partido.

Não precisamos fundar um novo PT. Já tivemos a experiências de os movimentos chegarem ao poder. O projeto já deu seus erros e acertos. Tivemos óbvios ganhos sociais, a meu ver, em programas sociais, benefícios etc., mas também há óbvios limites. Não faz sentido tentar reproduzir tal experiência. Por outro lado, a mobilização antiinstitucional, que se recusa ao diálogo, vira uma espécie de mobilização autoexpressiva, fica muito próxima da arte, o que tem a ver com a gênese na contracultura de tais movimentos. A gênese na contracultura do novo ativismo social deixa marcas. É muito autoexpressiva. No movimento antiglobalização, fazíamos um esforço enorme para não transformá-lo num grande carnaval, porque expressamos nossa insatisfação sem nenhum sentido estratégico, se esgotando na autoexpressão, numa negatividade vazia.

Temos de encontrar um ponto intermediário em relação à manifestação autoexpressiva e contracultural... Até nos movimentos convencionais vemos ações desprovidas de sentido, que dizem ser “pra motivar a militância”. Isto é, algo puramente autoexpressivo. E é uma tendência histórica dos movimentos sociais. O desafio é converter a necessidade de autoexpressão da indignação e subordiná-la a uma estratégia, sem institucionalizar os movimentos.

Os corruptos são acusados de ludibriar as regras do jogo, sem que os críticos da corrupção discutam o jogo ou sequer as regras

A indignação vem de os corruptos obterem ilegitimamente uma posição favorável na distribuição da mais-valia, mas os indignados não põem em causa a legitimidade da exploração da mais-valia. Um parlamentar exige que o dono do restaurante do parlamento lhe pague uma dada quantia mensal, é um escândalo; mas o fato do dono do restaurante explorar a força de trabalho dos empregados nada parece ter de escandaloso. E o fato das obras públicas permitirem aos vereadores embolsar uma parte dos lucros dos empreiteiros enche de cólera aqueles que não se comovem com o sistema que permite aos empreiteiros realizarem lucros. Os exemplos são intermináveis, todos eles revelando a mesma ambivalência dos críticos.

Esta ambivalência é possível porque a crítica à corrupção se situa mais no plano moral do que no plano econômico. Aliás, é esta mesma a função da moral na política — permitir uma mudança nas aparências, mantendo a realidade que as sustenta. Envernizar o capitalismo por fora, mas continuando ele rugoso por dentro.

Será que no Brasil a corrupção é maior agora do que foi noutras épocas?

É bem possível que o seja, porque a mobilidade social ascendente gera a corrupção. Um sujeito cuja fortuna foi feita pelo bisavô, nos tempos do café e da república velha, cuja família consolidou e modernizou as suas fontes de riqueza e cujo nome está desde há muito inscrito nas elites do seu estado tem e sempre teve acesso aos prazeres da vida. O bisavô foi corrupto para que ele pudesse ser honesto. Mas aquele que aos oito anos de idade vendia picolés debaixo do viaduto, que aos dez anos trabalhava na oficina e aos quinze na fábrica e só deixou de morar numa favela quando ascendeu na hierarquia da central sindical e pouco tempo depois exercia funções em Brasília, como pode ele competir com as elites tradicionais sem acumular rapidamente muito dinheiro, muito mais do que a sua remuneração oficial lhe permite?

Esta regra não é absoluta, nenhumas regras sociais o são, e assim como se conhecem os nomes de alguns membros das elites tradicionais especialmente adeptos da corrupção também se pode presumir que muitos membros das novas elites não cedam às tentações. Mas não creio que o Brasil permaneça como uma exceção relativamente aos efeitos da mobilidade social ascendente verificados noutras sociedades.

Da convergência programática à eleição prévia do programa neoliberal

Resta saber quem vai para a cadeira de comando formal nesse circuito de agrados antecipados aos mercados em que será “sinalizada” a candidatura melhor avaliada. Quem avalia previamente são os “grandes eleitores”, as forças de mercado que adquiriram ainda maior influência sobre as sucessões eleitorais após a liberalização financeira e as privatizações nos anos 90 – e ultimamente as parcerias público-privadas. A força de gravidade dos capitais (conjugados e interagentes com o Estado) é medida justamente pelo poder de regular o regulador. As eleições gerais, antes capazes de proporcionar imprevistos históricos, se converteram em momentos de repactuação entre as diversas frações de capital inseridas e interpenetradas no Estado. Então, candidatos(as), demonstrem capacidade de promover as liberalizações colocadas em pauta no Brasil e de proporcionar estabilidade às transações econômicas decorrentes.

 Em contextos de crise, não há como simular equilíbrios e equidistâncias. Com a obsolescência do pacto baseado no boom das commodities, as perspectivas “melhoristas”, corretivas e adaptativas saíram do horizonte. As opções programáticas estão sendo assumidas de forma clara e inequívoca pelas três candidaturas da ordem.

 Silenciosos golpes de Estado ocorrem no Brasil a cada eleição geral. A partir de 1994, um programa econômico único foi se cristalizando e considerado intocável – o que fez com que nosso capitalismo se tornasse cada vez mais transnacional, rentista e patrimonialista. O papel do Real nesses vinte anos foi sincronizar e chancelar as transferências de valor que converteram o Brasil em uma generosa praça financeira – lastreada com títulos públicos e participações preferenciais em privatizações anunciadas – e depois em uma ilimitada praça de commodities com fronteiras espaciais e regulamentares em constante redefinição.

 Olhando mais de perto a fórmula da coalizão em vigor, para além das circunscrições parlamentares e partidárias, distingue-se uma dinâmica neocorporativa na agregação de interesses com dupla natureza: associativa-deliberativa junto ao sistema financeiro e dos conglomerados empresariais; e desmobilizadora-cooptadora junto às camadas populares.

 Um neocorporativismo de geometria variável e assimétrica que segrega espaços de poder especializados, seguindo a lógica da composição de interesses por cima e pela costura da aceitação social por baixo. Essa fórmula de “estabilidade política”, construída nos governos Lula e Dilma, chegou a constar no repertório das melhores práticas institucionais propagado pelo Banco Mundial. Tornou-se sistêmica, funcional e por isso não há perspectiva de alteração desse método por nenhum dos candidatos oficiais.

O que é central para os mercados está assegurado nessas eleições, por privilégio adquirido nos últimos exercícios governamentais. Durante o mandato de Dilma:

a) a macroeconomia seguiu alinhada para a suficiente extração e circulação desimpedida de ganhos financeiros com a dívida pública, apesar das pressões inflacionárias, que no fim das contas servem para aumentar a imperatividade das metas de inflação;

 b) a pauta de exportações espraiou-se conforme a especialização produtiva propiciada pelas “cadeias globais de produção”, como se homogêneas e neutras fossem;

 c) a agenda governamental seguiu majoritariamente uma condução empresarial por meio de canais seguros e blindados, no Palácio e nos Ministérios-chave;

 d) teve início o mais amplo programa (Programa Integrado de Logística - PIL) de privatização dos setores de infraestrutura desde os tempos de FHC;

 e) foram aprovadas vultosas desonerações para operações financeiras e para atividades de exportação e draw back ;

f) esforços intensivos e articulados foram empreendidos pelo BNDES e pelo Itamaraty para sustentar os territórios ampliados das transnacionais brasileiras na América Latina e África;

g) contingenciamentos de recursos e sacrifícios de políticas e programas classificados como “intervencionistas” foram a regra, especialmente a partir de 2011, quando não casualmente o governo Dilma interrompeu a trajetória descendente de juros e elevou abruptamente o piso do superávit primário. Ficava clara a mudança de “viés” acerca do comportamento do governo diante do agravamento dos efeitos da crise internacional. Foi assim que o próximo mandato presidencial tornou-se uma mercadoria futura.

 Cá entre nós, se a reeleição de um governo “pós-neoliberal” depende de tantos recuos e concessões rigorosamente neoliberais, de que servirá afinal essa recondução? Mais honesto que jogar a presidência novamente no colo dos tucanos, não seria entregar o comando formal a um conselho financeiro-empresarial coordenado pela FEBRABAN, CNA e CNI?

 O poder capitalista, contudo, não pode dispensar o teatro e a cena política, como se pode notar pelo teor dos slogans da troika autorizada a disputar o poder central: “Mais mudanças, mais futuro”, garante Dilma; “Bem-vindos à mudança”, refaz Aécio; e “Coragem pra mudar”, prometem Campos/Marina.

Realmente o transformismo (a manutenção da ordem através da simulação da transformação da ordem) nessas eleições beira o patético, pois tudo o que se pretende mudar servirá para aprofundar ajustes e medidas privatizantes de caráter irreversível. Mudar, verbo intransitivo?

 Se querem mudanças, dizem os atores-títeres, eis que coincidentemente queremos mudanças!

 Mais mudança e mais futuro com mais poder aos mercados? Mudança bem vinda seria a “plena” autonomia do Banco Central e das Agências Reguladoras? A coragem serviria para mudar os rumos dos processos de integração regional a partir de acordos do Brasil e da UNASUL com a Aliança Pacífico e a Parceria Transpacífica (TPP)? Se é nessa direção que virão “mais mudanças”, então já sabemos o resultado das eleições gerais de 2014.

 A chamada oposição, encenando o papel da matriz lógica do modelo econômico vigente, radicaliza o discurso para insuflar as demandas dos setores rentistas e do agronegócio, justamente os mais indiferenciadamente internacionalizados. Pelo método da extrapolação, proposições desmedidas são consideradas razoáveis. Nessa montagem, Aécio apresenta-se como sombra de um eventual super-ministro da Fazenda, Armínio Fraga, cujo papel seria o de blindar ainda mais a política econômica. O mesmo Armínio – que, à frente do Banco Central em 2002, arquitetou a transição do governo FHC para o governo Lula, incluindo acordos e contratos com o FMI e o sistema financeiro – é convocado para ser um condottiere dos mercados, agindo em defesa de seus “fundamentos”. Repete-se o mantra: metas de inflação decrescentes tendo o centro da meta como piso desejável. O superávit primário deve atingir máximo percentual possível para reduzir de forma “consistente” a relação dívida/PIB – forma pouco criativa de valorizar os títulos da dívida com ajuste fiscal e aumento de juros.

A dissidência Campos/Marina procura mostrar ainda mais “coragem pra mudar” que os tucanos. No intuito de adquirir a confiança necessária para as reformas de mercado, prometem esforço igual ou superior na execução do regime de metas de inflação. O ajuste fiscal, por sua vez, deve ser furioso, implementado em maior profundidade e pela via rápida, com a criação de um conselho de política fiscal com autoridade de impor os cortes de gastos “que se fizerem necessários”, como estipulado nas propostas emanadas de economistas vinculados à dupla. Cumpra-se e doa a quem doer? Os mercados, que até gostariam de acreditar, agradecem o afago.

 Aqui vemos que algo mudou nas eleições gerais após 2002. Ao invés do coro, pregado nos tempos de crença na automaticidade do mercado, espera-se que os candidatos participem de um jogral mais meticuloso, iniciado bem antes das eleições e reiterado nelas. Colocações mais certas e afinadas com os mercados fazem com que os apoios de fundo venham à tona, subsequentemente cresce o volume de campanha da candidatura, assim como a presença nos meios de comunicação monopolísticos. Logo as pesquisas de opinião confirmam as profecias dos mercados sendo cumpridas.

Constata-se que há um programa mínimo já eleito que, por sua vez, define os programas máximos possíveis na institucionalidade capitalista dada. Por outro lado, há um contra-programa difuso que exige serviços públicos, infraestrutura social e manutenção do poder de compra dos salários, que se impôs nas ruas em junho de 2013. Programa que não coube na nossa exígua democracia real e dela foi expelido. Programa e contra-programa seguem cursos incomunicáveis e potencialmente colidentes em meio à crise internacional e nacional prolongada. Os tênues limites existentes entre democracia e ditadura ficam expostos quando se coloca em questão o programa oficial dos grandes negócios, os megaprojetos do capital e os megaeventos esportivos. A prisão arbitrária de membros de uma “organização”  vocacionada para o protesto social como momentos de tensão e aprendizado social pode ser encarada como uma fresta que demonstra um Estado de Exceção à flor da pele, latente por sob a rala institucionalidade política do país. Os conflitos distributivos aflorados em 2013 e início de 2014 estão sendo neutralizados e invisibilizados do e no cenário da eleição programada.

 Cabe perguntar: se eles usam as eleições para já acertarem entre si suas contas sobre os custos e os efeitos da crise, nossa tarefa não deveria ser ajustar contas com essa esfera, relativizá-la e transgredi-la em nome de uma institucionalização por nascer? A proposição de uma Constituinte exclusiva poderia ter esse caráter saudavelmente transgressor, se no centro de sua agenda estivesse não o sistema eleitoral, mas o controle de última instância do Estado, a devassa da dívida pública, a política econômica, a soberana execução orçamentária e a possibilidade de tributação real da riqueza. Esses sim poderiam ser temas geradores de poder social de que tanto carecemos.

Pode-se afirmar que vivenciamos, em potência aferida, a condição de um duplo poder. O problema é que o contra-poder surgido sequer se reconhece ou definiu seus contornos, enquanto o poder constituído trata de filtrar ou criminalizar os efeitos disruptivos advindos de seu anverso. Será um grande teste para esse regime de coalizão aprofundar as reformas de mercado, mantendo a calmaria política. Garantidos o recuo das políticas verticais e o aprofundamento das reformas de mercado ainda “inconclusas”, as agências de risco e os thinks tanks do capitalismo brasileiro e global apostam no poder das três candidaturas de domesticar as cidades e campos rebeldes através de programas assistenciais e/ou de estabelecer uma extensa malha de criminalização do protesto e da organização social autônoma.

Os experimentos de reposição da ordem liberal, ou de ajustes nos ajustes realizados na Grécia e Espanha, a despeito dos inúmeros levantes populares nos dois países, não têm aplicação em um país com o peso econômico e a complexidade do Brasil. Sem reformas estruturais que superem as formas e os modos de fazer política e que façam retroceder o domínio dos lucros sobre o que pode ser social e coletivo, o país continuará patinando no lodaçal, à mercê de explosões sociais erráticas e da resposta sistêmica da barbárie normatizada. Manter os horizontes de socialização e de democratização do poder à vista é preciso.

Obrigado Alemanha!

Apesar de parecer contraditório, temos muito o que agradecer aos deutschen, alemães em alemão.
Mesmo levando uma goleada histórica, o que acabou comprovando que essa é, de fato, a copa das copas, nós temos muito que agradecer aos nossos “carrascos”. Além do belo jogo que eles fizeram, impecável em quase todos os aspectos, inclusive no respeito, mesmo quando estavam goleando, de quebra, eles ainda nos acordaram para a realidade.
Desde que a Copa começou, entramos em estado de transe. Nada mais importava a não ser o resultado das partidas. Enquanto estávamos na disputa pelo 1º lugar, fechamos os olhos para tudo que ocorria a nossa volta e, ironicamente, exaltávamos o país resumindo-o ao seu time de futebol: “Mostra sua força Brasil”. 
Não foi preciso nem mesmo soar o apito final para que muitos começassem a sair do êxtase. Bastou uma vantagem de 5 gols para que o nacionalismo ufanista ruísse. 
Durante o tempo em que a bola rolava, esquecíamos do país em que vivemos e vangloriávamos a “pátria de chuteiras”, slogan do governo para a Copa de 2014. O que ocorreu, ou estava ocorrendo, fora das 4 linhas pouco ou nada importava. Nem mesmo os fortes indícios de superfaturamento das obras da copa; tortura e assassinatos de Amarildo, Claudia, dentre outras vítimas da polícia; mortes durante as construções das arenas (9 pessoas); mortes no viaduto em Minas Gerais (2 pessoas e diversas feridas); prisões arbitrárias por manifestações antes e durante o mundial; caos na saúde; remoções forçadas, que totalizaram cerca de 250 mil pessoas, o que corresponde a quase metade da população de Cuiabá.
Pelo menos, para uma coisa a copa do mundo no Brasil serviu, para mostrar o caráter de classe do Estado. Digo isso, não querendo me referir a um ou outro governante e fazer disso uma instrumentalização para alguma campanha que está por vir, mas, sim, referir-me ao Estado como estrutura de dominação de classe.
O Estado rasgou seu fino manto de neutralidade e expôs sua face mais obscura. Revelou que não é por falta de recursos que a saúde, educação, lazer, saneamento, moradia, vão mal. Contudo, pelo real papel que o Estado tem, ou seja, defesa dos interesses da classe dominante. Com copa ou sem copa, essas áreas não seriam priorizadas, a menos que lutássemos por isso. Com copa, o transe dificultou muito a visualização das contradições do Estado, e tudo caiu em uma grande “Fan Fest” – alusão aos espaços de eventos da FIFA durante os dias de jogos.
O despertar, propiciado pelos alemães, nos possibilita voltarmos a enxergar essas contradições e nos mobilizarmos pelo que realmente importa, pelo que realmente define o amor ou não por nossa gente. Por esse favor, devemos, sim, grande gratidão aos alemães. Quem sabe a timidez deles na comemoração da goleada não foi vergonha alheia daqueles que sabem que depositávamos nosso “cartão de visita” em um esporte no qual fomos humilhados?

Jelder Pompeo de Cerqueira
Cientista Social

Trabalhador da Educação 
Militante da INTERSINDICAL

Alternativa Sindical Socialista

‘Nossa opção em São Paulo é poluir a água que está perto e captar a que está longe'

Após um verão extremamente seco, São Paulo se depara com o fantasma do racionamento, o que nem de longe pode ser atribuído somente ao clima dos últimos meses e à respectiva ausência de chuvas. Trata-se de um cenário histórico de imprevidência, aliado à falta de uma cultura que enxergue a água como bem escasso, o que se traduz em toda uma história de opções feitas ao longo das décadas. É assim que resume a arquiteta e especialista em gestão de recursos hídricos Marussia Whately, entrevistada pelo Correio da Cidadania.

“O que chama mais atenção no sistema Cantareira é que, apesar de os últimos anos serem menos chuvosos, no cenário de previsões as medidas tardaram muito em serem tomadas. Por que se demorou tanto, se já vínhamos de dois verões com menos chuvas e as previsões para este já eram de clima mais seco?”, indagou.

Em toda a entrevista, Marussia coloca uma discussão técnica, a despeito do atual momento pré-eleitoral, que aparentemente condiciona algumas medidas tomadas pelo governo estadual. Nesse sentido, ela afirma a necessidade urgente de mudarmos nossos hábitos de consumo de água. “Uma medida importante seria o consumo mais racional da água, para evitar desperdícios, como o uso de uma água nobre, tratada, potável, para lavar calçada. Poderia haver uma série de medidas de reuso, utilizando mais de uma vez a mesma água no edifício, como já se faz em vários lugares”, enumera ela, que citou outros exemplos aplicados mundo afora.

Ainda no contexto paulista, Marussia lembra da opção histórica em buscar água cada vez mais longe, uma vez que os rios próximos sempre foram poluídos, levando à necessidade de se fazerem grandes obras de captação distantes do centro de consumo. “Creio que agora chegamos ao ápice dessa crise, que nos leva a tomar decisões como usar o volume morto. Esta, na minha opinião, é uma medida desesperada e, do ponto de vista de quem tem de gerir os mananciais, irresponsável. Ações de economia deveriam ser permanentes numa região que tem pouca água. Deveriam ser ação do governo, não da Sabesp”, alerta ela, que falou ainda sobre o contexto nacional associado a São Paulo.

A entrevista completa com Marussia Whately pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Os reservatórios de água de São Paulo estão secando a olhos vistos, e o sistema Cantareira é o maior símbolo dessa seca. A falta de chuvas, como de praxe, tem sido apontada como o grande vilão. Em que medida o problema está associado à escassez de chuvas e, ao mesmo tempo, como entra a administração e planejamento estatais, via Sabesp, nessa história?

Marussia Whately: No último verão, a região do Cantareira passou por uma estiagem bastante intensa. E já podemos verificar que temos três verões recentes com menos chuva. No verão passado, choveu realmente bem menos. Na região do sistema, choveu 54% da média histórica. E nos dois anos anteriores, algo em torno de 80%. Há um ano seco, mas também um acúmulo de estiagem. Ou seja, não é que o período de seca acabou. A estiagem aparece há pelo menos três verões. E no ano passado choveu menos ainda. É um lado, o do fator climático – outras regiões do Brasil têm enchentes, estiagem...

O que chama mais atenção no Cantareira é que, apesar de os últimos anos serem menos chuvosos, no cenário de previsões as medidas tardaram muito em serem tomadas. Por que se demorou tanto, se já vínhamos de dois verões com menos chuvas e as previsões para este já eram de clima mais seco? Por que não se tomaram medidas de diminuição de consumo entre novembro e dezembro de 2013? Por que as medidas ainda demoraram quatro meses para serem tomadas, sendo que passamos o verão sem chuva? Os reservatórios já iniciaram a estação com níveis baixos de reservação de água. Fica claro que tivemos problemas de gestão, mas é preciso olhá-los um pouco mais longe no tempo.

A região metropolitana de São Paulo é considerada um lugar de pouca água. Não porque a água não existe, mas porque a que existe está poluída. E, há mais de 100 anos, nossa opção é poluir a água que está perto e captar a que está longe. Já foi assim quando substituíram as nascentes que existiam no centro da cidade por mananciais mais distantes, com a degradação de rios como o Anhangabaú, Tamanduateí, Tietê, Pinheiros etc., e na busca por mananciais cada vez mais distantes, começando pelo Guarapiranga. Depois tivemos a construção, há 40 anos, do sistema Cantareira, que é bem mais longe. Agora, a previsão é buscar água na bacia do rio Ribeira do Iguape, mais longe ainda... As fontes parecem inesgotáveis para trazer água. E isso significa fazer obra: para captar, para transportar, para tratar e para distribuir. É um mundão de obras.

A nossa gestão de recursos hídricos tem sido historicamente essa. Buscar água cada vez mais longe e não cuidar daquela que está em casa. Vivemos agora uma situação que infelizmente não é exclusiva do Brasil. Locais como Austrália e Califórnia estão passando por estiagens severas. Na Califórnia, existem cidades fechando, porque não se consegue mais água. Há um cenário do clima (não necessariamente de mudança climática, pois já se passou por outras secas) que requer mais atenção, e não é o que temos visto.

Há 40 anos, foi construído o sistema Cantareira, e há 10 anos tivemos a outorga dada pela Agência Nacional de Águas (ANA). Os rios que formam o sistema partem das nascentes do rio Piracicaba, que abastece também Campinas, Piracicaba e todo um conjunto de cidades muito importantes em termos de população, economia etc. Esse sistema não tinha muita regra até 2004, não se sabia com quanto de água a região do Piracicaba podia ficar, quanto a Sabesp pegava... Aí tivemos a regulação por meio da outorga, que definia essas questões. Havia um banco de águas e, quando os reservatórios ficavam mais cheios, era possível usar um pouco mais de água. E havia o compromisso de, em 10 anos, a Sabesp diminuir a dependência da região metropolitana em relação ao sistema Cantareira.

Em agosto passado, a outorga deveria ser renovada e, pelo que foi conversado, lá atrás, São Paulo deveria ter menos água do Cantareira a partir de tal momento. Provavelmente, teremos um adiamento dessa outorga, porque, com a situação atual, não dá pra pensar em diminuir a água para São Paulo, a despeito de que muitos municípios da bacia do Piracicaba estão entrando em estado de calamidade, para garantir água para a capital. Alguns já entraram em racionamento, de modo que o compromisso da Sabesp em diminuir tal dependência carecia de uma série de ações que tinham de ser tomadas ao longo desses 10 anos, e que teriam, provavelmente, evitado a situação atual.

Correio da Cidadania: Quais ações imediatas poderiam ser tomadas para amenizar o problema, a despeito dos interesses políticos ora em jogo?

Marussia Whately: Podemos ter ações de diminuição de perda de água, o que foi feito, através principalmente da perda de faturamento. Isto é, um monte de gente que usava água da Sabesp sem pagar passou a pagar, o que diminuiu a perda de faturamento. Hoje, dentro dos valores que a Sabesp divulga sobre o estado (o índice da região metropolitana não está acessível), há algo em torno de 30% de perda – 10% de não faturamento e 20% de perdas físicas, vazamento da rede. Houve, portanto, uma diminuição das perdas, o que é muito importante. Se adotarmos esse número para a cidade de São Paulo, equivale às represas Billings e Guarapiranga juntas, que abastecem quase 6 milhões de pessoas. Isso quer dizer que o combate às perdas é uma ação fundamental e deve ser perseguida.

Outra medida importante seria o consumo mais racional da água, para evitar desperdícios, como o uso de uma água nobre, tratada, potável, para lavar calçada. Poderia haver uma série de medidas de reuso, utilizando mais de uma vez a mesma água no edifício, como já se faz em vários lugares do mundo. Por exemplo: usa-se água pela segunda vez para algo menos nobre. Toma-se banho e depois essa água pode ser usada para lavar o jardim sem problemas. Outra medida de redução de consumo muito importante, que poderia ter sido adotada, seria a instalação de hidrômetros individuais nos prédios...

É muito mais difícil reduzir o consumo num prédio do que numa casa. Conversei com várias pessoas que moram em casa e conseguem reduzir tranquilamente em 30% o uso de água. Em prédio, por mais esforço que se faça, depende-se do vizinho. Além do uso coletivo, há o individual, e a conta é coletiva. Às vezes pode haver um esforço grande, mas, se um vizinho não contribui ou se tem apartamento vazio com vazamento, pode não adiantar nada. São medidas que ajudariam a redução do consumo, e também na responsabilização de quem é perdulário quanto ao consumo de água.

Outra coisa importante tem a ver com a opção de São Paulo em buscar água cada vez mais longe. Ao usar tal política, vemos que só se pensa em novas obras. Não se olha para a água que já temos e como usá-la. Por exemplo: a represa Billings tem um espelho d'água seis vezes maior que o da Guarapiranga. E não usamos boa parte dessa água. E por que não usamos essa água que está muito mais perto do que a Cantareira e o Vale do Ribeira? Porque está poluída. E se tivéssemos realmente trabalhado pela despoluição dela ao longo dos últimos dez anos? Precisaria fazer uma obra que custa pelo menos 2 bilhões de reais, para trazer água do Vale do Ribeira, impactando toda uma região, explorando mais uma nova área fora da metrópole e poluindo mais ainda os mananciais daqui?

Adotamos políticas de buscar água cada vez mais longe e não se tomaram outras medidas. A situação é que, desde o ano passado, discute-se outorga, e já se sabia que a Sabesp não teria condições de ter sua outorga diminuída, porque não teria como suprir o resto da água para São Paulo. Existia um compromisso que não foi honrado, o que se deve mais à política de sempre fazer mais obras do que à incapacidade técnica. Agora, já se contratam obras, provavelmente mais rapidamente e por mais dinheiro.

Correio da Cidadania: Diante de tudo que você falou sobre o que não foi feito ao longo dos anos, e também elencando medidas de curto prazo que podem ser tomadas, que medidas acredita serem necessárias para o longo prazo?

Marussia Whately: Em termos de ações efetivas (cada vez mais a regra, e não exceção, nas cidades pelo mundo), São Paulo enrola há décadas com a despoluição do Tietê e outra série de rios (que nem dá pra chamar de rio) que cortam a cidade. Tudo isso representa uma maneira de se lidar com a água que agora, talvez, alcance seu extremo. Com uma forma de gestão bastante questionável: “vamos contar com as chuvas”. Como assim? Estamos vivendo um momento no qual é cada vez mais incerto o que vai acontecer com o clima. E contamos só com as chuvas para abastecer a maior metrópole do país?

Creio que agora chegamos ao ápice dessa crise, que nos leva a tomar decisões como usar o volume morto. Esta, na minha opinião, é uma medida desesperada e, do ponto de vista de quem tem de gerir os mananciais, irresponsável. Porque vai fazer a população ficar sem água em novembro, e não em julho. Mas dizem que “pode ser que chova”. Pode ser. As previsões de tempo para os próximos três meses são incertas, não sabemos se vai chover igual, chover mais ou menos. Ninguém sabe. Estamos apostando no terço das possibilidades: “vai chover mais”. Tem que chover muito mais. E nisso se opta por usar o volume morto. O nome correto é “volume morto para abastecimento”. Não para o reservatório. É uma reserva operacional, ou seja, para que o sistema continue existindo. Não se deve usar essa água. Ao ser usada, o rio ou manancial, ao perder toda sua água, vai demorar muito mais para se regenerar – se o fizer. Porque o solo ficará mais exposto e, quando vier a água, ela será rapidamente absorvida por ele, não vai encher nenhuma represa. Vão se intensificar os processos de erosão, assoreamento... Ou seja, deprecia-se o sistema de produção de água, algo irresponsável, pois não sabemos o que vai acontecer.

Em São Paulo, o que deve ser pensado para o longo prazo é um novo jeito de tratar da água. Assumir, entender e incorporar políticas que tratem a água como recurso escasso. E sua conservação, em todas as suas formas (potável, de reuso, de esgoto), tem de ser um modo de vida para a cidade. Falo isso até inspirada no plano que foi lançado para a Califórnia, que passa por uma estiagem severa há pelo menos três anos. Foi feito um plano de ação no qual a primeira medida é tratar a conservação da água como um modo de vida. Evitar desperdício, reutilizar, não lavar calçada com água de melhor qualidade etc.

É um pouco difícil pensar o longo prazo porque não sabemos como sairemos dessa crise atual. Mas é urgente rever o atual modelo, que só trabalha com a ideia de fontes de água inesgotáveis, que podem ser buscadas de modo incessante. Deve-se buscar outro modelo, que use a água mais racionalmente.

Por exemplo, Los Angeles lançou metas superambiciosas de redução de consumo, de compromisso da cidade... E não é nada disso que vemos aqui, onde se consome à vontade, pois a água “jorra da torneira”. É necessária uma mudança tanto no nível estrutural, governamental, como no nível individual, de as pessoas entenderem que vivem numa região com pouca água, pois boa parte da que existe aqui foi poluída. Ou cuidamos e recuperamos essa água, ou o investimento para trazê-la de mais longe não necessariamente ocorrerá no tempo em que se precisará da água da torneira.

Correio da Cidadania: Como você tem avaliado a postura do governo Alckmin no tratamento dessa seca? Os métodos utilizados para o convencimento popular têm sido efetivos, a seu ver, ou servem apenas para ganhar tempo?

Marussia Whately: Ações de economia de água deveriam ser permanentes numa região que tem pouca água. Deveriam ser ação do governo, não da Sabesp. É importante lembrar: a Sabesp é uma empresa de capital misto, com ações que repartem dividendos com seus acionistas. Ela tem como principal missão “vender água”. Não dá pra esperar de quem quer vender água a missão de convencer seus consumidores a usarem menos. A missão da empresa é vender mais. A questão do consumo tem de ser política de governo, e não política de uma companhia de saneamento que tem como missão vender água.

O governo, em boa parte dessa crise, e de suas decisões, jogou tudo para a Sabesp, como se não fosse nada com ele. É importante lembrar que a questão da água nunca é responsabilidade de um só. Quem trabalha na área sabe que gestão da água é, por princípio, gestão de conflito. Sempre haverá um usando mais que outro, um poluindo a água do outro etc. Portanto, na linha das soluções, existem vários responsáveis, por diferentes tipos de soluções. O governo estadual tem responsabilidade porque, no sistema de concessões, a companhia está ligada a ele, apesar de ser de capital aberto. E a gestão estadual de recursos hídricos também está em seu colo.

No entanto, os municípios não deixam de ter sua responsabilidade, pois concedem para a companhia um contrato de cessão de uso, concessão de serviço. Por exemplo: a prefeitura de São Paulo tem um contrato assinado com a Sabesp no qual lhe concede o direito de fornecer água no município. Esse contrato prevê que a Sabesp deveria repassar parte de seu faturamento para a prefeitura fazer o fundo municipal de saneamento. Ao que tudo indica, esse dinheiro nunca foi parar na conta da prefeitura. Poderia ser usado para subsidiar os hidrômetros individuais em prédios, o que não é barato. Isso foi feito, por exemplo, em Nova Iorque na década de 90, quando houve um programa subsidiado para trocar caixas de descargas, chuveiros e diminuir o consumo de água.

Além do papel das prefeituras, há as empresas que retiram água das mesmas bacias de onde a Sabesp tira, ou que poluem essa água... A agricultura, em regiões do Cantareira ou do Alto Tietê, também tem responsabilidade, se pensarmos que 70% do consumo de água no país é relacionado à agricultura, especialmente ao agronegócio, responsável principal pelo grande aumento do consumo de água no país nos últimos anos.

É uma coisa que chamamos de responsabilidade socioambiental compartilhada, em que cada um tem sua parte, tal como as pessoas ao usarem água em casa. Você pode até fazer um esforço enorme dentro de casa, guardar água em balde, correr risco de dengue, mas, se esses outros entes não fizerem sua parte, não adianta nada.

Correio da Cidadania: Como associa a crise de abastecimento de água na cidade e estado de São Paulo com demais regiões do Brasil, em termos da extensão e gravidade da mesma?

Marussia Whately: Não temos muito como afirmar uma relação direta. Mas é possível falar numa relação com o período de estiagem. Existem estudos que relacionam a estiagem com as diversas alterações pelas quais tem passado o território brasileiro. São Paulo vinha sendo cenário daquilo que muitos municípios acreditavam, isto é, de que o caminho é copiar seu modelo de cidade – e seu trânsito, enchentes... Em São Paulo, tais coisas sempre acontecem primeiro.

Em São Paulo, temos o modelo de gestão de oferta. É o seguinte: pegam a demanda e buscam água aonde der, como no Ribeira do Iguape. O Brasil tem feito isso, de modo geral. O atlas do abastecimento urbano da ANA mostra que, até 2015, metade dos municípios do Brasil terá de expandir suas fontes de água.

Mas a nossa única opção é “expandir fontes”? Temos de trabalhar a gestão de demanda. É melhor olhar que tal cidade precisa de determinada quantidade de água; depois, é preciso gerir essa demanda, ao invés de buscar mais água. Mas a política do Brasil é derrubar floresta, fazer hidrelétrica, no espírito de “está tudo aí para a gente usar”. E não é bem assim...

Correio da Cidadania: Finalmente, você acredita que haverá racionamento? Tal medida já teria sido tomada nas atuais circunstâncias, não fosse este um momento eleitoral?

Marussia Whately: Como uma pessoa que acompanha o tema, enquanto especialista, penso que o racionamento deveria ser adotado. Porém, como pessoa que vive em São Paulo, diria que o racionamento não deveria ser adotado. É uma das piores coisas que se pode ter. Se faltar luz em um restaurante, ele abre. Se faltar água, não. O mesmo vale para um shopping. Não dá pra manter os banheiros sujos etc. Realmente, a opção do racionamento é muito dura e, num sistema do tamanho do Cantareira, no qual as águas estão nos tubos há mais de 40 anos, as consequências podem ser muito imprevisíveis, até em termos de rompimento. De fato, seriam as mais desesperadoras possíveis.

Porém, estamos chegando numa situação em que pode ser necessário adotar o racionamento. Porque, se o volume morto, a despeito de todo o impacto ressaltado, acabar, vai ter que fazer racionamento, não vai ter água. Não se trata de uma defesa do racionamento, mas de traçar um cenário. E não é o caso de pensar que, se chover em outubro, está tudo resolvido. As previsões são de que o sistema Cantareira vai demorar uns dois anos para se recuperar...

Sócrates e o Militante Governista

Sócrates vinha passeando e de repente foi abordado pelo Militante Governista.

MG: Sócrates, não vai me dizer que também concordas com as manifestações contra a Copa?

S: Mas por que me perguntas isso?

MG: Porque, afinal de contas, são manifestações de coxinhas.

S: E por que os manifestantes são coxinhas?

MG: Ora, basicamente porque se opõem ao governo e ao PT e, portanto, ao progresso do país.

S: Então os manifestantes contra a Copa são todos coxinhas porque se opõem ao governo?

MG: Sim.

S: Mas não foi dentro do estádio que nossa presidenta foi vaiada?

MG: Sim.

S: E se os manifestantes são coxinhas, estando fora dos estádios porque protestando contra a Copa, os que estavam dentro não eram coxinhas?

MG: Também eram coxinhas, Sócrates.

S: Por quê?

MG: Porque xingaram a Dilma.

S: Deixe-me entender: dizes que apoias a Copa porque quem está contra é contra o governo e por isso é coxinha. E ao mesmo tempo afirmas que quem está dentro do estádio também é coxinha, porque xinga o governo.

MG: Sim.

S: Consequentemente, estás me dizendo que, apoiando ou não apoiando a Copa, o sujeito é coxinha.

MG: Não, Sócrates. Uma coisa é apoiar a Copa enquanto celebração do futebol, do Brasil e dos feitos do governo; outra coisa é ir ao estádio e participar da Copa.

S: Então há quem apoie a Copa, mas ao mesmo tempo seja contra quem está usufruindo a Copa e contra aqueles que criticam a Copa?

MG: Sócrates, deixa eu explicar melhor. O que estou dizendo é que, como nosso apoio ao governo é incondicional, mesmo sendo contra a forma como a Copa foi feita, nós apoiamos a Copa porque apoiamos tudo que o governo faz. Ao contrário dos coxinhas da oposição.

S: Então existe a Copa como uma “ideia” que vocês apoiam e a Copa real dos coxinhas que vocês não apoiam?

MG: Mais ou menos, Sócrates.

S: O que estás me dizendo então é que, como há coxinhas fora e coxinhas dentro, vocês ficam na posição de apoiar a Copa, por apoiar o governo, e não apoiar o público (e consequentemente a organização que direcionou para esse público) da Copa, porque vaiam o governo.

MG: É.

S: Mas ao mesmo tempo vocês não podem aderir às manifestações contra a FIFA, uma vez que, se o fizessem, estariam enfraquecendo o governo e fortalecendo os coxinhas das ruas?

MG: Sim, mas há uma diferença. Os coxinhas das ruas são menos coxinhas que os dos estádios. Na verdade, devido à história do nosso partido e nosso governo, temos até uma pequena simpatia pelos movimentos, já que eles defendem coisas que defendíamos antigamente. Mas hoje o mais importante é manter o governo forte, e isso significa recusar tanto os menos quanto os mais coxinhas.

S: Então vocês são contra a forma como a Copa foi feita, não contra a Copa enquanto ideia, mas não podem aceitar que as manifestações contestem o governo, já que a prioridade é fortalecer o governo.

MG: Sim, Sócrates.

S: Isso significa que o interesse em defender a Copa é puramente estratégico, ou seja, tem relação apenas com a defesa do governo em geral, sem especificidades?

MG: É, mais ou menos isso. O importante é que o PT siga no governo; por isso, apesar da FIFA, das desocupações, da violência policial e tudo mais, apoiamos o governo, mesmo que isso signifique contradições específicas, já que a contradição seria ainda maior se fizéssemos oposição à Copa (e por isso ao governo).

S: Deixa ver se eu entendi: vocês apoiam a Copa porque apoiam o governo e, portanto, rejeitam os protestos como coisa de coxinhas. Mas quem é que vai usufruir a Copa mesmo?

MG: Os coxinhas master , os que vaiaram em Itaquera.

S: Então, segundo vocês, a melhor estratégia para lidar com os coxinhas das ruas (que são coxinhas porque se opõem ao governo) é apoiar o evento em que quem está são os coxinhas master ?

MG: Não entendi.

S: Considerando que o interesse é puramente estratégico, pergunto: é uma boa estratégia apoiar um evento – mesmo não concordando com a forma que foi feito – apenas “por apoiar” se justamente quem vai ao evento é o público dos coxinhas master ? Vocês não estão apoiando para fortalecer exatamente aquilo que os enfraquece?

MG: Ah, Sócrates. Deixa pra lá. Agora só falta me dizeres que não foi pênalti no Fred, porque isso é coisa de coxinha!

S: Críton, devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de pagar essa dívida!

Moyses Pinto Neto é pesquisador transdisciplinar da violência. Doutorando em Filosofia (PUCRS). Professor da ULBRA.

 

‘Automobilização sindical e movimentos urbanos fortalecem ativismo social'

Voltamos a junho, mês que novamente ficará para a história nacional, por marcar uma volta completa no calendário após as manifestações que chacoalharam o país, agora às portas de sediar a vigésima Copa do Mundo de futebol. Não faltarão manifestações e festejos populares, além de um bombardeio midiático em ambas as frentes, a fim de registrar, analisar e refletir o momento.

“Penso que aquele ‘estilo' de manifestação não deve se repetir, levando em consideração que as pautas de hoje são mais focadas, específicas, e tendem a se desenvolver de forma mais orgânica do que em junho de 2013, quando, simplesmente, as pessoas desceram de seus apartamentos e foram às ruas reivindicar saúde, educação e transporte, mas também pautas diversificadas. Acho que esse espontaneísmo não se verificará em 2014”, disse o sociólogo do trabalho Ruy Braga , em entrevista ao Correio da Cidadania.

Como se nota na afirmação, ele enxerga uma mudança qualitativa nos atuais manifestos, menos massivos, porém, refletindo o que já vinha em gestação. “As reivindicações que estão sendo levantadas pelo movimento sindical e os trabalhadores em greve, em seu conjunto, conformam uma tendência que vem desde 2008. Desde então, os dados são muito claros, o número de horas paradas e greves tem crescido ano após ano. É importante, para além do contexto de Copa e eleições, pensar no que está acontecendo em termos de estrutura do mundo do trabalho de hoje no Brasil”, observou.

Braga vislumbra um novo ciclo de lutas, com enraizamento crescente, e que traz a novidade de movimentos sindicais descolados das velhas direções se cruzarem com os novos atores sociais urbanos. “Temos, de fato, um verdadeiro levante nos setores mais precarizados, terceirizados, com condições degradantes de trabalho e sub-remuneração... Um verdadeiro levante contra as direções sindicais e também contra o comodismo que tomou conta do sindicalismo oficial do Brasil no último período”, explicou.

A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: A alguns dias da Copa cercada de contestações, qual a sua opinião sobre o atual momento do país, com a gama imensa de trabalhadores e movimentos sociais na rua, com pautas tão diversificadas?

Ruy Braga: Em primeiro lugar, é importante destacar que, em termos de mobilização sindical, o atual momento que vivemos não é diretamente relacionado à Copa do Mundo. Evidentemente, existe o contexto da Copa, que estimula um nível maior de atividades reivindicativas. No entanto, as reivindicações que estão sendo levantadas pelo movimento sindical e os trabalhadores em greve, em seu conjunto, conformam uma tendência que vem desde 2008. Desde então, os dados são muito claros, o número de horas paradas tem crescido ano após ano no Brasil, assim como o número de greves.

Isso significa que há algo por trás desse movimento reivindicativo, que está além da atual conjuntura, seja a da Copa ou da eleição presidencial. O mais interessante é pensarmos, portanto, nas tendências subterrâneas que efetivamente nos permitam compreender o atual ciclo grevista. Porque, de fato, é um número alto de greves. Só temos os dados até 2012, mas o Dieese já ventila que 2013 foi superior em greves, um recorde histórico, e muito provavelmente 2014 será ainda maior.

Acho importante, para além do contexto de Copa e eleições, pensar no que está acontecendo em termos de estrutura do mundo do trabalho de hoje no Brasil.

Correio da Cidadania: Sendo assim, qual a sua avaliação sobre a organização sindical atual e as lutas que têm eclodido, especialmente quando se tem em mente que muitas das greves acontecem à revelia das direções?

Ruy Braga: Acho que esse é um ponto interessante para analisar. Até 2012, pelo menos, com algumas exceções importantes – como são os casos notórios das greves em Belo Monte e das usinas do Rio Madeira, do Complexo Petroquímico do RJ (Comperj) e do Complexo de Suape (PE), que foram greves também organizadas e realizadas até certo ponto à revelia dos sindicatos oficiais –, o movimento sindical, como um todo, ainda não havia perdido o controle sobre os trabalhadores. Não acho, ainda, que o movimento sindical tenha perdido tal controle. Entretanto, aquilo que antes era exceção (o processo de automobilização das bases que passa por cima do sindicato) está se tornando cada vez mais frequente, em especial naqueles grupos de trabalhadores que se encontram em situações mais precárias, tanto em suas condições de trabalho como nas condições contratuais.

Desse modo, tem-se uma situação em que está se tornando muito frequente tais trabalhadores atropelarem suas direções sindicais, a fim de obterem suas reivindicações. Por que? Porque, por um lado, o sindicalismo brasileiro está muito atrelado aos interesses do Estado e do governo brasileiro. Mesmo aqueles setores sindicais não tradicionalmente alinhados ao PT e à CUT, que estão em outras centrais, sempre estiveram muito alinhados, neste último período, ao governo federal. Ao lado dessa razão, o tal sindicalismo acabou se acostumando com formas de negociação pela cúpula. É o famoso cupulismo sindical.

Assim, acredita-se que um tipo de negociação direta com a empresa, ou mesmo com estados ou municípios, sem a participação da mobilização dos trabalhadores e sem amplos debates, é suficiente. E está se demonstrando que não é suficiente. Mostra-se insuficiente por duas razões: condições muito precárias de trabalho e salários baixos.

Portanto, temos, de fato, um verdadeiro levante nos setores mais precarizados, terceirizados, com condições degradantes de trabalho e sub-remuneração... Um verdadeiro levante contra as direções sindicais e também contra o comodismo que tomou conta do sindicalismo oficial do Brasil no último período.

Correio da Cidadania: Estamos quase completando um ano das grandes manifestações de 2013. Como você faria a correlação entre o atual momento com estas manifestações? Houve uma mudança qualitativa?

Ruy Braga: Sem dúvida nenhuma que junho de 2013 marca uma virada de página na história recente do país em termos de conjuntura política. Isso significa, entre outras coisas, que dezenas de milhares de pessoas, talvez milhões, descobriram o caminho das ruas, das mobilizações (e automobilizações), das reivindicações, o que naturalmente serve como espécie de estímulo ao movimento sindical. E a novidade do momento é o cruzamento do movimento sindical (ainda que mobilizado mais pelas bases) com os movimentos sociais urbanos, especialmente aqueles voltados à luta pela moradia.

Assim, temos, num patamar bastante elevado, o aumento do ativismo social de modo geral e o incremento da automobilização sindical, além do seu encontro com a revivificação do movimento social urbano. Isso tudo faz com que a conjuntura se torne bastante explosiva do ponto de vista da luta de classes. Ou seja, existe, de fato, uma sensação e um sentimento de inquietação, que está se transformando, a todo tempo, em indignação, greves, protestos e desafios aos governos e empresas.

Correio da Cidadania: Acha que há perspectivas de se repetir um movimento tão massivo quanto o de 2013?

Ruy Braga: Acho que não se repetirá o que houve em 2013, considerando-se que foi um movimento espontâneo. Acredito que teremos muitas manifestações durante a Copa do Mundo, existirá um incremento no nível de participação popular em termos de protestos e greves. Porém, não acredito que isso assumirá a forma de muitos milhares ou milhões de pessoas nas ruas.

Penso que esse “estilo” de manifestação não deve se repetir, levando em consideração que as pautas de hoje são mais focadas, específicas, e tendem a se desenvolver de forma mais orgânica do que em junho de 2013, quando, simplesmente, as pessoas desceram de seus apartamentos e foram às ruas reivindicar saúde, educação e transporte, mas também pautas diversificadas, motivadas por múltiplos interesses. Acredito que esse tipo de espontaneísmo não se verificará em 2014.

Correio da Cidadania: Como acredita que todo este cenário vá impactar as eleições, considerando as candidaturas majoritárias de Dilma, Aécio e Campos/Marina?

Ruy Braga: No âmbito federal, acredito que, talvez desde a primeira eleição de FHC, seja a eleição presidencial mais imprevisível. Porque, de fato, o país aprende a fazer política no sentido popular, desde baixo, reivindicativa. E ao fazê-lo rompe com aquela rotina burocrática de uma política decidida no gabinete, nos parlamentos, nos ministérios, no planalto, ou seja, desafia o mainstream político brasileiro, em seu todo. E, ao desafiá-lo, cria uma zona de incerteza, de imprevisibilidade, que tende a se ampliar.

Eu não arriscaria dizer que a Dilma se reelegerá, ou o Aécio ganhará, ou que o Eduardo Campos não será eleito. Acho que todas as previsões são arriscadas. É claro que as tendências ainda permanecem mais ou menos estáveis. Há uma acomodação no eleitorado da Dilma, um crescimento das oposições citadas de maneira geral, mas não vejo ainda como cravar um resultado. Temos de ser mais cautelosos. É bem provável que, num eventual turno, a Dilma seja reeleita. No entanto, não diria isso com 100% de certeza.

Correio da Cidadania: As forças mais progressistas, e à esquerda do espectro político, estão a seu ver sabendo aproveitar este momento de maior efervescência das lutas sociais para avançar o debate político, captando e dialogando com os anseios demonstrados pelas ruas?

Ruy Braga: Acredito que, do ponto de vista social, ou seja, daquele enraizado nos movimentos, no sindicalismo, nas periferias e assim por diante, existe certo consenso e acordo em torno da ideia de que é necessário construir alternativas à esquerda do PT. Construir instrumentos de luta, que passam necessariamente por um resgate, uma ressurreição do debate político no nível micro, isto é, em bairros, associações, sindicatos. Existe uma sensação muito difusa de que é necessário discutir política, e tal sensação é mais afinada com a militância da esquerda social, da alternativa socialista, enfim, com aquilo que o PT deixou de fazer nos últimos 10 anos, por estar mais preocupado em administrar o aparelho de Estado.

No entanto, esse consenso nas bases, de uma esquerda social que se consolida nos movimentos, um movimento sindical alternativo que se robustece, um enraizamento nas periferias, que também tem acontecido, não está se traduzindo em alternativas eleitorais. Há uma série de razões que explicam isso, mas sou mais otimista.

Esse acordo das bases, praticamente uma exigência para que se consolidem alternativas políticas socialistas, em especial ao PT, para romper com todo o burocratismo a que nos acostumamos e se traduzir eventualmente na formação de frentes de esquerda estaduais, em coalizões de partidos da “extrema” esquerda, no fortalecimento eleitoral de tais partidos, não me parece que deva ser “prioridade zero” da política de esquerda.

O eixo tem de ser a construção da unidade, a consolidação de alternativas de esquerda nos movimentos e sindicatos, um debate franco, aberto e claro entre os partidos, em termos de quais são as melhores vias e práticas afinadas com esse espírito. Esse eixo é mais importante do que forçar uma eventual candidatura, quando não há ainda as condições políticas e institucionais para tanto.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

‘É fundamental um programa de país que aponte para além das eleições'

O Brasil se aproxima da Copa de 2014 e também das eleições presidenciais. Por esses dias, quanto mais se chega perto desses esperados acontecimentos, mais se embaralha o cenário político. Especialmente quando se está diante de uma imprensa, e dos grupos econômicos e políticos que a monopolizam, que trazem uma avaliação tão parcial e distorcida da realidade.

Aos olhos dessa mídia e setores que a controlam, de um lado está a candidatura petista, irresponsável frente aos cânones liberais do fiscalismo e monetarismo, além de populista em seu discurso pró-população desfavorecida; de outro, textos e subtextos não escondem a quase aclamação aos candidatos que nem mesmo se atêm a subterfúgios em sua defesa do mais retrógrado conservadorismo.

Os discursos dos candidatos mais notáveis ao cargo de presidente não agregam, por sua vez, nada de positivo a esse cenário. Do lado do governismo, procura-se encarnar o “bem”, em contraposição ao “mal” que adviria da eleição dos candidatos de oposição, representantes da direita tradicional. Já para estes, circularia do outro lado do espectro político a incompetência administrativa e uma hipócrita adesão aos pobres.

Em meio a esse faz-de-conta, alguns fatos podem ser tomados como bastante evidentes: a queda da popularidade e apoio à candidatura petista e uma adesão geral, de todas as maiores candidaturas, sem exceção, e a despeito da efervescência dos clamores populares, aos apelos do mercado.

É para avaliar este contexto, e aprofundar o entendimento dos acontecimentos neste momento pré-eleitoral, que o Correio conversou com o historiador Mário Maestri, para quem “as administrações petistas seguiram respeitando caninamente o grande capital e apostando na revolução do ‘mercado social capitalista', onde todos obteriam tudo, ou quase tudo, pagando tudo”.

O atual estado de mal-humor da população, “raramente conhecido”, associa-se, para o historiador, à disparidade entre “o país dos sonhos, formado por multidões de membros da classe média”, e as duras condições de vida com que tem de fato se deparado a população.

Quanto à atual queda de apoio ao governo, Maestri acredita que tem resultado em mais exigências do capital, “ ainda mais além do já muito que recebe, para manter seu apoio, mesmo relativo: privatização do petróleo, dos portos, dos aeroportos, das estradas; juros altos; financiamento público do capital privado, arrocho salarial etc. Sonha em abocanhar a Petrobrás, a Caixa Econômica Federal, o BNDES”. Trata-se, porém, de “crise de governo, e não de dominação”, em função de uma tendência ao continuísmo, visto que “os candidatos da direita tradicional e da dissidência governista não encantam a uma população que sonha com mudanças substanciais” .

Abaixo, a entrevista completa, onde o historiador fala também a respeito do atual estado da classe trabalhadora do país, das perspectivas que se abrem para novas manifestações populares durante a Copa e também das chances de avanço das forças progressistas e de um novo projeto de país nas próximas eleições.

Correio da Cidadania: Qual sua visão da situação social e política atual do Brasil?

Mário Maestri: Vivemos tensão social crescente, para a surpresa da senhora presidenta e do bloco dominante no governo, que anunciam baixo desemprego [em relação às taxas tradicionais]; aumento [tímido] do valor dos salários; subvenção [misérrima] de segmentos populares pobres e paupérrimos. Eles literalmente dormiram entoando gentis cirandas sobre país onde todos eram “classe média” e acordaram abraçados no tigre da crise, que morde de maneiras jamais vistas.

Consolida-se realidade até hoje literalmente desconhecia. Populares cortam as ruas e as estradas, apenas ainda sem a organização dos piqueteros argentinos. As incessantes violências policiais; as interrupções dos trens e metrôs; o desabastecimento de água e de luz; os alagamentos urbanos periódicos; os desalojamentos etc. resultam em manifestações explosivas, lutas de rua, incêndio de viaturas e ônibus, literalmente a cada dia.

Ignoradas no passado como fato viral quotidiano, essas lutas expressam o desgosto de segmentos populares e difundiram-se em forma irregular das megalópoles, com destaque para o Rio de Janeiro e São Paulo, para o resto país, defrontando as forças policiais. As explosões da ira popular atingem veículos da grande mídia e estabelecimentos bancários, em sinal de politização e de absorção de atos marginais das grandes manifestações de 2013. Atos midiatizados ao extremo pelas redes televisivas, com o claro objetivo de deslegitimar as mobilizações populares.

Também a classe trabalhadora organizada tem dado e vencido inúmeras e importantes greves, como o movimento dos garis do Rio de Janeiro ou as paralisações nas arenas futebolísticas. Em Porto Alegre, motoristas e cobradores pararam totalmente o transporte público, enquanto a Justiça do Trabalho multava duramente sindicato rejeitado pelos grevistas.

Palpita entre a população nacional um mal-humor raramente conhecido, de profundidade difícil de aquilatar.

Correio da Cidadania: A que devemos essa situação inusitada?

Mário Maestri: Na última década, o país conheceu modificações profundas. A população assalariada estendeu-se e fortaleceu-se e recuaram as formas de produção e existência pré-capitalistas e pré-mercantis. Nesse novo mundo onde tudo se paga, os aumentos salariais médios ultrapassaram de pouco os ganhos anuais da produtividade, quando ultrapassaram, ganhos facilmente perdidos por qualquer surto inflacionário, mesmo setorial.

No contexto de universalização de meios de antecipação da renda para facilitar o consumo [cartões de crédito; empréstimos populares; crédito consignado], o mercado engoliu guloso, direta ou indiretamente, mais e mais, serviços imprescindíveis, antes fornecidos em forma gratuita ou subvencionada pelo Estado – luz, telefonia, transportes, segurança etc.

As administrações petistas seguiram respeitando caninamente o grande capital e apostando na revolução do “mercado social capitalista”, onde todos obteriam tudo, ou quase tudo, pagando tudo. Anunciaram o advento de país dos sonhos, formado por multidões de membros de classe média que andariam de avião e teriam planos de saúde, enquanto enorme parcela da população suava para pagar o ônibus; morria na fila do SUS; via esvair-se seus magros salários e aposentadorias antes que o mês acabasse!

Simplesmente, deu no que tinha que dar. Degradação geral das condições de vida da população quanto à saúde, ao transporte, à educação, à segurança, ao lazer, aos serviços, à mobilidade, à moradia Tudo exacerbado pelo gigantismo urbano, fenômeno já nacional.

Correio da Cidadania: Essa nova realidade tem produzido consciência e organização popular?

Mário Maestri: A população trabalhadora vive sob enorme stress , sem conseguir consolidar avanços gerais de organização e consciência. Para isso contribuiu a desmoralização dos sindicatos e partidos populares, engolidos pelas benesses da colaboração com o Estado e o capital. Desmoralização para a qual a grande mídia, a enorme e geral corrupção política e a privatização do Estado contribuem incessantemente.

A população trabalhadora vive situação contraditória, entre a resistência, a submissão, a integração. Por um lado, expressa a raiva em múltiplas e novas formas de resistência e dissidência. Por outro, procura lenitivo para a dor social nas igrejas evangélicas e, robotizada nos comportamentos, sacrifica-se no altar do consumo compulsivo e forçado. Organiza rolezinhos e bailes funks, aos milhares. Mergulha com gosto na alienação que não raro se esforça para superar.

Correio da Cidadania: Você enxerga chances de virada nesse cenário, como, por exemplo, a mobilização popular transformar a crise econômico-social em crise política?

Mário Maestri: Já vivemos crise no bloco político burguês comandado pelo PT. A queda de apoio ao governo permite que o capital exija ainda mais além do já muito que recebe, para manter seu apoio, mesmo relativo: privatização do petróleo, dos portos, dos aeroportos, das estradas; juros altos; financiamento público do capital privado, arrocho salarial etc. Sonha em abocanhar a Petrobrás, a Caixa Econômica Federal, o BNDES.

Porém, trata-se de crise de governo, e não de dominação. Não há ameaça à gestão do Estado e às instituições. Mais ainda, favorece no geral a tendência ao continuísmo o fato de que o candidatos da direita tradicional e da dissidência governista não encantam a uma população que sonha com mudanças substanciais e rejeita o mesmo prato com nomes diversos. Entretanto, é verdade o crescente e acelerado desencanto da população com o governo dilmista

O coelhão que tentaram tirar da cartola mostrou-se menos confiável que Jânio Quadros e Collor de Mello. Salvo a aceleração da queda do consenso em torno da presidenta, já bastante forte, a principal tendência é o repeteco , em outubro, possivelmente em segundo turno, com próximo governo comandado pela senhora Dilma Rousseff ainda mais subserviente ao grande capital e, paradoxalmente, cada vez menos petista.

Correio da Cidadania: A movimentação social que se abriu no país desde as grandes manifestações de 2013 pode vir a efervescer novamente este ano, por ocasião da Copa, antes, portanto, das eleições?

Mário Maestri: O Mundial pode servir de gota d'água desbordando a crise. Acidentes produzidos pela imprevidência pública e voracidade privada, como enchentes, epidemias, apagão, desabastecimento de água, ações do crime organizado, etc., podem potenciar o stress popular. Ainda mais que é geral a consciência da monumental corrupção e queima de recursos que a Copa constitui, no contexto das abismais carências populares.

Diversas categorias profissionais, entre elas as polícias militares, pretendem servir-se da proximidade da Copa para obterem conquistas que perseguem com dificuldade, ao igual do que feito na África do Sul. O mesmo pode ser feito pelo crime organizado, para avançar pauta de reivindicações . E não é de se descartar totalmente que facções da direita tradicional apostem na desconstrução da copa ou em desestabilização controlada para golpear o governo Dilma Rousseff, Lula da Silva e o petismo.

Nos últimos tempos, a questão social tem voltado a ser tratada mais e mais como questão de polícia. Com a proximidade da Copa, em dimensão que já lembra os tempos da ditadura militar, o governo federal conta com que a euforia da competição galvanize a população e prepara-se para sufocar manifestações residuais com enorme e faraônico aparato judicial, policial e militar. Se as mobilizações engrossarem, mesmo medianamente, o reflexo repressivo pode ter conseqüências difíceis de aquilatar, não apenas para as eleições.

Correio da Cidadania: Um tal cenário abriria perspectivas maiores para o avanço das forças progressistas?

Mário Maestri: Não creio. As classes dominantes no Brasil são singularmente fortes, coesas e mantêm pleno domínio da Justiça, do parlamento, do exército, das forças policiais, dos sindicatos etc. Contam igualmente com o controle total dos meios de comunicação e com vasta hegemonia político-ideológica. O mundo do trabalho no Brasil é singularmente frágil e não possui organizações classistas.

O movimento Occupy ou dos indignados galvanizou a Espanha e os Estados Unidos, sobretudo, e terminou evacuado sem glória pelo ralo dos movimentos sem direção e programa. O movimentismo tem fôlego curtíssimo. Se as classes trabalhadoras e populares não criam direções sociais e políticas, as classes exploradoras absorvem as explosões sociais frustrando avanços políticos, organizativos e programáticos. O Egito é exemplo paradigmático desta realidade.

Se as classes trabalhadoras e populares não conseguirem criar direções conseqüentes para sua defesa e para a luta pela superação do atual período, a sociedade seguirá afundando na barbarização social em que o Brasil e o mundo engolfaram-se nas últimas décadas. Barbarização que começa a se precipitar singularmente no Brasil.

Correio da Cidadania: O que é ou quais são os representantes da esquerda hoje no país, e como poderiam enfrentar as eleições que se avizinham?

Mário Maestri: Como no resto do mundo, também no Brasil é dramática a necessidade de partido e programa de classe para organizar os segmentos trabalhadores e populares. Porém, por razões nacionais e internacionais, não contamos com um núcleo político-organizacional, pequeno que seja, apontando nessa direção. E sua construção mostra-se extremamente complexa.

Vivemos sob a influência da contra-revolução mundial iniciada nos anos 1990. No mundo dito socialista, ela impôs a restauração do capital; no mundo capitalista, a regressão de conquistas históricas e dissolução e decomposição de partidos, de organizações, de sindicatos etc. do mundo do trabalho.

A derrota histórica dos trabalhadores motivou grave regressão subjetiva, que tem como maior expressão a perda de confiança do mundo do trabalho em seu programa como solução da crise que vive. O mundo do trabalho não acredita na superação socialista da ordem capitalista. Essa regressão histórica objetiva e subjetiva determina profundamente as organizações que se propõem revolucionárias.

Correio da Cidadania: Como vê, nesse contexto, a perspectiva de ação política de partidos como PSOL, PCB e PSTU?

Mário Maestri: A crise da esquerda marxista no Brasil exige uma análise detalhada e cuidadosa. Em forma muito aproximativa e pontual, podemos dizer que, em formas diversas, todas essas organizações foram profundamente tocadas pela regressão do mundo do trabalho ou nasceram nesse contexto terrivelmente difícil.

O PSOL encontra-se no último caso. Após o impulso da luta contra a destruição petista da previdência pública, rejeitou a proposta de direção do partido pelos núcleos e, portanto, de construção junto às lutas sociais, e centrou-se na participação nas instituições burguesas e na conquista de senadores, de deputados, de vereadores etc. São esses últimos que dominam hoje o partido. O projeto do PSOL é a reforma, e não a superação do Estado burguês, com o qual mantém ligação umbilical. Mantém diferenças de quantidade com o PT, mas não de qualidade. Sua atual chapa à presidência sintetiza essa realidade.

O PSTU-LIT é organização brasileira de raízes argentino-morenistas, fundado há quatro décadas. Construiu-se através do sindicalismo superestrutural e oficial brasileiro, incrustado no Estado burguês. A legalização de sua central radicalizará essa dependência umbilical. Sua inserção sindical superestrutural expressa-se na incapacidade de conquistar consenso eleitoral.

Sem raízes sólidas entre os trabalhadores, o PSTU-LIT vergou-se às terríveis pressões democrático-burguesas, abandonando o programa do mundo do trabalho: combate a unidade sindical; abraça as reivindicações setoriais [cotas raciais]; colabora subjetivamente com o imperialismo nos seus ataques a Cuba, à Bolívia, ao Equador, à Venezuela. Radicalizando esse viés contra-revolucionário, sustentou politicamente a campanha imperialista na Líbia e, agora, propõe frente única com o imperialismo, do qual exige mais armas para a contra-revolução na Síria! [http://www.pstu.org.br/node/20077]

O PCB propôs progressista política de reconstrução partidária, que se propunha a necessária reagrupação da esquerda classista no Brasil. No entanto, não consegue romper as amarras com o passado. Propõe superação do popular-nacionalismo, mas o abraça ao reivindicar o espólio do antigo partidão . Em recente declaração sobre 1964, rejeitou com uma mão o colaboracionismo pecebista, fortemente responsável por aquela derrota; e, com a outra, resgatou a política corrigida do PCB após o golpe. Política que entregou a luta anti-ditatorial à direção da “burguesia democrática” representada pelo MDB. [“O PCB e o Golpe de 1964 – 1º de abril de 2014].

Uma operação de resgate do espólio envenenado do PCB que lança pela janela o que houve de melhor naquele partido no pré-1964, expulso pelos prestistas sem direito à discussão, após o golpe, ou seja, militantes como Apolônio de Carvalho, Carlos Marighela, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Jacob Gorender e centenas de outros, que ousaram defrontar a burguesia, mesmo com propostas incorretas. Vacilação político-ideológica que levou ao apoio à candidatura burguesa de Dilma Rousseff no segundo turno, em 2010. Apoio, salvo engano, que espera ainda ser auto-criticado. ["Derrotar Serra nas urnas e depois Dilma nas ruas. PCB – 13 de outubro de 2010.”]

Correio da Cidadania: Mas não seria um avanço uma frente de esquerda, em outubro deste ano?

Mário Maestri: Seria, sim, fundamental uma candidatura presidencial supra-partidária, apoiada no PCB, PSOL e PSTU-LIT e extensiva a todos os grupos e organizações que quisessem participar e aceitassem programa classista e anti-capitalista. Frente eleitoral que organizasse núcleos populares suprapartidários de base apontando para além das eleições. A simples aliança das legendas, para conseguirem mais alguns deputados, seguida, após o pleito, de “bom dia, até mais ver”, será sentida pela população como outra sopa de letrinhas.

Em um sentido mais geral, creio que um movimento de reagrupação, centralização e rearmamento político e ideológico da vanguarda trabalhadora e do povo de esquerda será possível, na medida do que necessitamos, a partir de uma vitória substantiva setorial dos trabalhadores, no mundo ou no Brasil. O que não nos desobriga de trabalhar duro – e acender uma velinha, por que não! – para facilitar que isso ocorra.

Contribui indiscutivelmente para que esse projeto avance e frutifique a conformação de uma jovem, combativa e relativamente numerosa vanguarda, surgida nas lutas que se têm acelerado nos últimos tempos. Ela se encontra nos grupos e partidos de esquerda e, em boa parte, fora deles.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

2014: instabilidade, incertezas e lutas

2014 é um ano que começa já marcado por efemérides. 30 anos do comício das Diretas Já, 50 anos do golpe militar de 64, a copa do mundo novamente no Brasil, eleições presidenciais. Ao contrário de 2013, que não trazia inscritos grandes datas e acontecimentos históricos, mas que protagonizou as maiores e mais intensas manifestações populares dos últimos tempos.

As surpresas que são reservadas para 2014, para além dos fatos marcantes que já estão no radar, não há como adivinhar. Nada faz supor, no entanto, que será um ano de calmaria.

As avaliações prospectivas desse Correio no começo de 2013 já prognosticavam a limitação de visão estrutural e um estreito arco de ação redistributiva nos quais vinham se enquadrando as medidas do governo que procuravam impulsionar uma economia em crise. Agora, neste início de ano novo, estão evidentes, para além dessa miopia, um repique e reincidência do governo no conservadorismo econômico a la FMI, respondendo às pressões e chantagens do mercado financeiro e do grande capital e fazendo ouvidos moucos às vozes eloquentes que vieram das ruas em 2013.

Como de praxe, as maiores vítimas serão as populações que há séculos sofrem com a ausência e péssima qualidade de serviços públicos. Ainda que favorecidas pela farra do consumo, com TVs e celulares de último tipo, essas populações certamente voltarão às ruas, à medida que assistirem às finalizações das obras faraônicas voltadas à copa, enquanto sofrem para terem acesso à saúde, educação, segurança pública e transporte de qualidade.

Nosso entrevistado especial para esta edição especial prospectiva é Pablo Ortellado, professor e pesquisador da USP e também militante pela democratização e expansão das políticas culturais. Para Ortellado, “2014 vai ser um teste para a nossa democracia. Porque os compromissos que foram assumidos pela Copa do Mundo são muito pesados, são muito antidemocráticos. Foram compromissos muito grandes, assumidos de uma maneira, digamos, vertical pelo governo federal, envolvendo o respeito aos direitos civis e aos nossos direitos políticos. Assim, nós temos restrições à liberdade de expressão, restrições à liberdade de associação e em relação à capacidade que temos de fazer oposição. Nós abrimos mão da nossa soberania. Nós somos obrigados a aceitar e implementar um conjunto de leis e medidas de proteção de propriedade intelectual que são contrapartidas ao acordo feito com a FIFA. (...) Os custos democráticos são muito altos. Eles envolvem a suspensão de direitos civis básicos, as remoções de população em cidades, projetos urbanísticos de grande impacto social”.

Quanto à cobertura midiática de tantos acontecimentos singulares nesses últimos meses, Ortellado não tem grandes esperanças no avanço da pauta da regulamentação dos meios de comunicação, “a grande ausência das três últimas gestões do Partido dos Trabalhadores”, em 2014. Acredita, no entanto, que o legado do aprendizado com as mobilizações sociais de 2013 reflita em mais movimentações em 2014, de forma a pressionar o governo em prol de políticas públicas a favor da população.

Leia a entrevista completa a seguir.

Correio da Cidadania: Falar de 2013 é falar do ano em que a população brasileira foi massivamente às ruas de todo o país em busca de direitos. Como você enxerga essas manifestações, pensando em todo o processo anterior de mobilização que a elas conduziu, no estalar e dimensão adquirida no mês de junho e no momento posterior à efervescência inicial?

Pablo Ortellado: Eu acho que o grande legado das manifestações foi a conquista da redução das passagens. O que a gente viu em junho de 2013 foi a maturação de um processo de pelo menos dez anos, no qual o aumento de passagens tem gerado reações de grupo de jovens urbanos que saem às ruas para protestar contra as tarifas. Aconteceu mais de uma dezena de vezes, em várias capitais brasileiras, desde 2003.

 É um processo que foi se acumulando, maturou e explodiu em 2013, quando as mobilizações em São Paulo e Rio de Janeiro contra o aumento das passagens serviram de modelo para conquistas de reduções em mais de cem cidades brasileiras, com mais de 200.000 habitantes.

 É uma vitória sem precedentes da mobilização popular, que reacendeu outras reivindicações. Algumas bem sucedidas, a maioria mal sucedida. Mas terminou fornecendo uma espécie de paradigma de que a mobilização popular e direta pode dar resultados muito concretos.

  Correio da Cidadania: O que pensa da forma com que os vários níveis de governo, municipal, estadual e federal, enfrentaram e têm enfrentado tantos e legítimos protestos populares, no que se refere ao atendimento às demandas sociais?

Pablo Ortellado: Como foi uma explosão muito difusa pelo território nacional, com muitas formas de reação, é difícil fazer uma apreciação geral. Para além das reações imediatas de governos, que reduziram as passagens numa parcela muito grande de municípios brasileiros (uma reação positiva, pois reconheceram a força e a legitimidade da demanda), penso numa segunda demanda, que foi mais ou menos transversal em todas as mobilizações de junho: a reforma da polícia.

 A regulamentação do uso de armas menos letais, o fim dos autos de resistência, a desmilitarização da polícia, entre outros pontos, foram reivindicações mais ou menos transversais a todos os grupos, e não houve nenhuma resposta por parte dos governos estaduais, que são responsáveis pela polícia, ou do governo federal, que tem uma política federal de segurança pública.

Essas demandas foram muito pouco atendidas, muito pouco escutadas e levadas em consideração e são, para mim, o grande déficit de 2013.

  Correio da Cidadania: O que diria, neste sentido, sobre o enfrentamento policial aos manifestos que têm se espalhado por todo o país?

 

Pablo Ortellado: A atuação da polícia foi muito ruim. Foi muito violenta, marcada por abusos. E é por esse motivo que o tema da reforma da polícia está no alto da agenda dos manifestantes, embora esteja num lugar muito baixo na agenda dos governantes.

 Essa má atuação da polícia, muito violenta, muito arbitrária, totalmente fora da lei, totalmente desregulada, exige um conjunto de medidas regulatórias que precisam ser enfrentadas. A mais óbvia delas é a regulamentação do uso de armas menos letais, o fim dos autos de resistência e a desmilitarização da polícia.

  Correio da Cidadania: O que dizer, face a esse contexto, dos chamados black blocks e de toda a polêmica que têm trazido à cena política nacional? Como encara este fenômeno?

  Pablo Ortellado: Eu acho que o black block foi um fenômeno superdimensionado e muito criminalizado. Este fenômeno dos black blocks foi tratado pelo poder público como uma ação absolutamente arbitrária, não razoável, beirando o irracional, a criminalidade e o terrorismo. Quando na verdade é uma tática que tem uma história, um objetivo discutido. Como todo tipo de tática, de estratégia, tem a sua razão de ser.

 Essa tática nasceu do esgotamento das fórmulas de desobediência civil não violenta, no contexto dos Estados Unidos, com o objetivo de resgatar a atenção dos meios de comunicação que não prestavam mais atenção na violência policial. Por meio de um ato de desobediência e a destruição de propriedade privada, que é o coração do Direito (dentro da atual ordem socioeconômica), com sua destruição simbólica, resgatou-se a atenção dos meios de comunicação que, na cobertura dos protestos, não davam mais atenção aos manifestantes e, sobretudo, à violência policial. Tal violência recaía sobre os manifestantes de modo que tornava impossível a tática de desobediência civil não violenta.

 Como reação, desenvolveu-se essa estratégia de destruição de propriedade, que chama a atenção dos meios de comunicação e transmite uma mensagem ao poder econômico, ao poder do Estado, à transnacionalização da economia e assim por diante.

 Ela tem uma racionalidade, do ponto de vista dos seus métodos de ação. É uma infração pequena. É uma infração ridícula. É quebrar vidraças e é de natureza não violenta. Mas foi muito criminalizada. Foram criadas operações especiais, investigações especiais, discutiu-se utilizar a lei contra o crime organizado com grupos que estavam empreendendo essas táticas... Com certeza, se a lei contra o terrorismo estivesse em vigência, já seria mobilizada para tal caso, uma absurda desproporção em relação ao que significa efetivamente o black block.

  Correio da Cidadania: Com a proximidade da Copa e as exigências mercadológicas da FIFA, o país prepara algumas leis de exceção, a exemplo dos tribunais da copa e da possível tipificação criminal do terrorismo, algo inédito no país. Além disso, desde já avançam nos parlamentos outras leis discutíveis, como aquelas que proíbem máscaras nos atos e versam sobre “formação de quadrilha” em manifestações. O que você diria desse quadro, o que pensa que viveremos nas ruas em 2014?

  Pablo Ortellado: 2014 vai ser um teste para a nossa democracia. Porque os compromissos que foram assumidos pela Copa do Mundo são muito pesados, são muito antidemocráticos. Foram compromissos muito grandes, assumidos de uma maneira, digamos, muito vertical pelo governo federal, envolvendo o respeito aos direitos civis e aos nossos direitos políticos.

 Assim, nós temos restrições à liberdade de expressão, restrições à liberdade de associação e em relação à capacidade que temos de fazer oposição. Nós abrimos mão da nossa soberania. Nós somos obrigados a aceitar e implementar um conjunto de leis e medidas de proteção de propriedade intelectual que são contrapartidas ao acordo feito com a FIFA. E tudo com um custo democrático muito pesado. Porque os retornos prometidos em termos de legado, visibilidade do país e aumento do turismo internacional são projetados para o futuro. E, de acordo com os estudos recentes feitos pela universidade, são retornos muito duvidosos.

 No entanto, os custos democráticos são muito altos. Eles envolvem a suspensão de direitos civis muito básicos, as remoções de população em cidades, projetos urbanísticos de grande impacto social. Já estamos pagando, a população brasileira já está pagando o preço de tudo, e o retorno é muito improvável, talvez incerto.

  Correio da Cidadania: Como tem visto a atuação da mídia em face a todos estes acontecimentos?

  Pablo Ortellado: Eu acho que os meios de comunicação melhoraram a cobertura. Estão muito mais sensíveis com as mobilizações sociais e os protestos de rua, obviamente mais do que eram em junho, mas ainda prestam muito pouca atenção na violência policial.

 A violência policial é o tema mais sub-noticiado, principalmente se tomarmos como comparação a criminalização dos movimentos sociais. A destruição de vidraça ganha muito mais destaque nos meios de comunicação de massa do que o assassinato de pessoas na favela da Maré.

 Eu acho que desproporções como esta, entre a cobertura da destruição de vidraças e o assassinato de seres humanos, é o grande déficit que ainda notamos na cobertura dos meios de comunicação, no que diz respeito a essa nova mobilização social.

  Correio da Cidadania: O que pensa da aparição de outra das novidades de 2013, no caso, a Mídia Ninja e atores similares?

Pablo Ortellado: Acho que houve vários novos atores que tentaram, por novos meios, sobretudo a internet, romper o padrão de cobertura dos meios de comunicação e contribuíram para chamar a atenção pra algumas coisas que os meios não notaram.

 Mas, por mais que o advento seja promissor, acho que uma parte muito grande, principalmente ao alcance de massa, em volume e atenção, ainda está muito concentrada nos grandes meios. Eles ainda têm uma forte responsabilidade, por conta do grande poder que detêm, capazes de atingirem populações de dezenas de milhões de pessoas.

  Correio da Cidadania: O ano de 2013 encerrou-se com adiamento da votação do marco civil da internet. Como tem enxergado a condução da pauta da urgente democratização, regulamentação e regulação das comunicações nesse cenário?

  Pablo Ortellado: Tenho esperanças de o Marco Civil ser votado em 2013. Nesta semana ( a primeira de dezembro ), houve uma movimentação no congresso pra tentar acelerar sua votação. Vamos ver. Mas penso que a pauta da regulamentação dos meios de comunicações é a grande ausência das três últimas gestões do Partido dos Trabalhadores, que carrega tal reivindicação em seus programas, porém, sem dar prioridade política. Acredito que nada aconteça em 2014, ano de eleição, por ser um tema extremamente sensível aos meios de comunicação, que ainda causam muito impacto eleitoral. Fico aguardando mais um pouco, sem muita esperança, se em 2015 veremos mudança de tratamento a este tema.

O Marco Civil talvez seja a iniciativa mais avançada, com mais chances de ser aprovada. Mas precisamos fazer a revisão da política de concessão de TV, a regulamentação da propaganda, dos conteúdos e seu perfil, da propriedade cruzada, ampliar o espaço dos meios comunitários e não comerciais, fortalecer o sistema de radiodifusão pública... Um enorme rosário de medidas para o campo da comunicação, que mal começaram a ser discutidas e que creio ser o grande déficit dos últimos dez anos.

  Correio da Cidadania: Se 2012 já havia se encerrado marcado pelo chamado Mensalão, 2013 o trouxe à mesa de modo que se pode dizer espetacular. O que pensa deste episódio e de sua visibilidade e repercussão pela mídia? O que tudo isto diz de nosso contexto político?

Pablo Ortellado: Vou estender meu juízo para 2014, onde teremos o julgamento do chamado mensalão mineiro, teremos o encaminhamento dos escândalos de corrupção do metrô de SP;  espero 2014 para ver se o tratamento dos meios de comunicação e do nosso sistema judiciário a estes temas será equivalente ao tratamento dado ao chamado caso do mensalão.

 Eu fico aguardando ansiosamente, pra ver se existe de fato uma disposição do sistema de encarar com muito rigor tais acusações de corrupção, independentemente de procederem ou não; se esta disposição independe de coloração partidária ou se simplesmente esse esforço sobre o mensalão petista foi desigual e orientado pelo interesse de um partido político.

  Correio da Cidadania: A espionagem internacional esteve no centro dos debates sobre mídia e comunicações em 2013. O que pensa de toda a celeuma em torno à questão e à forma como governo e mídia responderam a ela?

  Pablo Ortellado: Acho que o governo fez bem, reagiu de forma relativamente boa. A Dilma respondeu com força nas arenas internacionais a certas pressões que sofreu, no sentido de responder com mais pragmatismo e menos força retórica. Deu uma resposta dura, que pensei ser a mais adequada ao momento. Esse episódio permitiu que o Marco Civil, que andava meio travado, retornasse à pauta legislativa. Espero que seja aprovado.

 Mas, na verdade, a grande medida regulatória que teria impacto sobre esse cenário, a lei de proteção de dados pessoais, está completamente travada. Ainda está no Ministério da Justiça, não foi enviada ao Legislativo. É a principal lei que permitirá à cidadania brasileira ser protegida dos abusos dos governos.

  Correio da Cidadania: Alguma diferença relevante entre os dois governos, Lula e Dilma, no tema específico das comunicações, e também em suas respectivas conduções política, econômica e social da nação? Vislumbra chances de avanço em 2014?

  Pablo Ortellado: Acho que eles são muito parecidos, mais parecidos que diferentes. Esperava-se mais. Os avanços que temos são desdobramentos do que aconteceu nos períodos anteriores. Não vi nada no governo Dilma de muito novo acontecer. Espero que, num eventual novo mandato, nós tenhamos novidade. Principalmente nos campos onde temos políticas realmente muito ruins, isto é, meio ambiente, cultura e comunicação.

  Correio da Cidadania: Qual a sua opinião quanto ao cenário eleitoral que se está armando para 2014? Arrisca algum palpite?

  Pablo Ortellado: Acho que o cenário para 2014 é de reeleição da Dilma, como mostram as pesquisas de opinião, a não ser que os protestos embaralhem as cartas, uma possibilidade bastante grande. Por isso, é muito importante o governo rever os compromissos que assumiu e também ter uma postura de respeitar o direito de discordar. Os cidadãos brasileiros têm direito de discordar dos compromissos assumidos pelo governo em nome dos megaeventos esportivos. A cidadania brasileira tem o direito de discordar e um governo progressista deve reconhecer tal direito.

  Correio da Cidadania: Acredita que haja espaço nesse cenário para a entrada de uma esquerda que apresente novidades e receba atenção do grande público eleitor?

Pablo Ortellado: Não. Acho que teremos mais do mesmo. Penso que teremos a continuação de alguns avanços sociais que tivemos, até significativamente. O melhor cenário é a continuação do que já está: alguns avanços sociais e as demais áreas muito comprometidas. Segurança pública muito ruim, política ambiental e indígena muito ruins, política cultural estacionada e política de comunicações num verdadeiro desastre.

  Correio da Cidadania: Você possui uma visão esperançosa para o futuro das movimentações sociais que vêm rondando o mundo, desde a primavera árabe até a grande quantidade de movimentos ‘Occupy' que têm varrido diversos países, passando por alguns protestos massivos na Europa e, agora, os do Brasil em 2013?

  Pablo Ortellado: O meu otimismo todo reside neles. Penso que o povo brasileiro acabou de dar uma grande demonstração de força e conseguiu uma grande conquista social, que foi a redução da passagem em mais de 100 grandes cidades brasileiras. Espero que seja um aprendizado de que a luta e a mobilização sociais trazem benefícios sociais concretos. E que a difusão de tal aprendizado permita avanços nos setores onde a política institucional está bloqueada há dez anos, através das más performances do governo federal em política indigenista, ambiental, cultural e de comunicações. Espero que esse legado reflita em mobilização social que pressione o governo nas áreas onde seu desempenho é muito ruim.

  Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

 

Mídia e Estado seguem em insidiosa ação de deslegitimação das mobilizações e incentivo à violência. ( por Valéria Nader e Gabriel Brito)

Em greve há exatos 60 dias, os professores da rede municipal do Rio de Janeiro protagonizam o grande movimento reivindicatório do momento, tornando-se, portanto, os novos alvos da disputa ideológica em torno dos atos de rua, e seus significados, que vêm colocando o país de manifesto. A pauta da categoria em greve foi praticamente substituída pelas polêmicas em torno de violências nos protestos, seja por parte da polícia ou do novo ator político da cena, o black bloc.

“Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam”, disse ao Correio da Cidadania o historiador Mario Maestri, em entrevista que discute a violência do Estado, da mídia e também a atuação e a pertinência da tática do bloco negro, condenados ou exaltados dentro dos próprios debates da esquerda.

Maestri não mostra deslumbramento com a audácia dos ainda pouco interpretados ativistas de preto, mas pondera a discussão destacando a incessante atuação da mídia (que, não custa lembrar, pediu e recebeu o sangue dos manifestantes antes da virada de 13 de junho), aliada aos grupos estabelecidos no poder, no sentido único e exclusivo de desmobilizar os movimentos através do medo, enquanto omite toda a barbárie policial.

“Quando de greves, (a mídia) foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos”, assinala o historiador gaúcho.

Em sua visão, a explosão de junho ainda não criou o impulso posterior para a formação de um grande, e mais unificado, movimento em torno das necessidades essenciais, entre outras coisas porque “vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins dos anos 1980”, além de faltarem maior organização partidária e sindical para dar conta da magnitude do momento e capitalizá-lo em favor das causas e organizações populares.

A entrevista completa com Mario Maestri pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como vê o país após as multitudinárias manifestações de junho, com a atual retomada de movimentos populares Brasil afora? Vivemos uma retomada do fôlego da cidadania e, quem sabe, da construção de uma nova democracia?

Mário Maestri: Não vejo cenário social e político tão positivo. Apesar de sua indiscutível importância para a consciência de enormes parcelas da população, as manifestações de junho não abriram uma nova etapa histórica, modificando qualitativamente a correlação de forças entre o mundo do capital e do trabalho. Foram, sobretudo, a explosão do difundido mal estar de imensas parcelas da nossa sociedade, protagonizada pelos segmentos assalariados ditos inferiores e médios urbanos . As manifestações não conseguiram construir uma pauta de reivindicações clara, núcleos organizacionais e direção reconhecida.

Sobretudo, o operariado não interveio naquelas manifestações, ou após elas, quando do fiasco da tentativa da burocracia sindical de reconquistar o espaço simbólico-representativo perdido. Uma imobilidade devida substancialmente à baixa consciência e organização dos trabalhadores, os únicos segmentos sociais capazes de sustentar efetivamente um projeto de democratização social e política de largo fôlego.

Os aparatos de domínio de nossa habilidosa e despótica sociedade de classe procuram absorver e metabolizar o desequilíbrio produzido pelas manifestações – o que conseguem em um grau certamente não uniforme, em relação aos diversos segmentos sociais e diversas regiões do país, como prova a atual situação do Rio de Janeiro. Nesse processo, desempenha importante papel a mídia, sobretudo a televisiva, articulada explícita e implicitamente com os órgãos estatais. Foi e segue a insidiosa ação de deslegitimação e neutralização midiática das mobilizações, que alcançaram enorme consenso entre a população.

Correio da Cidadania: Como tem ocorrido esse processo de desconstrução do apoio às manifestações de junho, e das que se seguiram a ela, pela mídia?

Mário Maestri: Em junho, após o ataque frontal às mobilizações, a grande mídia procurou redirecionar sua retórica, devido ao caráter fluvial e apoio geral da população às demonstrações de rua. Por um lado, procurou influenciar politicamente o movimento, apresentando-o como anti-político, anticorrupção, anti-esquerda, diluindo suas reivindicações materiais – passagem, saúde, educação. Por outro, dividiu os manifestantes em bons e maus e as manifestações em positivas (aceitáveis) e negativas (abomináveis). Tudo segundo os padrões maniqueístas das narrativas televisivas triviais. Uma divisão com objetivos estratégicos.

A mídia apresentou as manifestações positivas como constituídas por cidadãos conscientes, e as negativas, por baderneiros, depredadores, anarquistas, arruaceiros. Mesmo sendo marginais os atos definidos como antissociais, e não raro encontrarem-se em contradição com as mobilizações, provocando comumente o repúdio dos manifestantes, a mídia televisiva centrou obsessivamente neles as imagens e os comentário s. Procura assim fixá-los e generalizá-los na retina do público, em processo consciente de intoxicação social, como o cerne das mobilizações, sua verdadeira essência. Procedimento reproduzido, em suas esferas de atuação, pelos grandes diários e revistas, por parlamentares, por cientistas sociais etc.

Uma sintaxe de divulgação televisa dos movimentos sociais que, midiatizando incessantemente as imagens - comentários desses fatos marginais, apresenta-os como elementos centrais, deslocando o conteúdo e essência dos fatos, como proposto. Prática generalizada pela grande mídia, que, quando de greves, foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos.

Nas manifestações de junho e nas mobilizações sucessivas, raramente os repórteres aproximavam-se dos manifestantes para ouvir seus pontos de vista, enquanto eram regularmente entrevistados representantes das forças policiais ou comentados os danos causados pelos baderneiros . Os depoentes enquadrados eram e são quase essencialmente os que corroboravam os conteúdos conservadores propostos pela mídia para as mobilizações. A apresentação de um comentário se fixa como a opinião geral, ainda mais quando são diversos depoentes.

Correio da Cidadania: Como você encara a forma com que o Estado lida com as mobilizações populares? Há articulação entre o Estado e a grande mídia? O que pensa de grupos como, por exemplo, a Mídia Ninja?

Mário Maestri: Esse processo de demonização e de criminalização da luta social deu-se em íntima aliança com o Estado. Sobre muitos atos de violência midiatizados são abundantes as provas e indícios de que foram e são promovidos, incentivados ou viabilizados pelos órgãos policiais. Diante dos olhos atônitos da população, ataques a bens públicos valorizados como orelhões , paradas de ônibus, bancos de praças, vidraças de prédios, de moradias etc. processam-se longamente, sem inibição, fartamente filmados, enquanto manifestantes são agredidos pela polícia, longe do enquadramento faccioso da mídia.

Esse processo de seleção da imagem e da informação pela grande mídia tem sofrido desconstrução, ainda que limitada, permitida pela verdadeira democratização relativa da captação e divulgação da imagem, através, sobretudo, da filmagem por celulares, e sua divulgação no facebook , youtube etc. Essa espécie de guerrilha da imagem e de seus conteúdos tem constrangido comumente a grande imprensa, pautando-a e neutralizando-a, relativamente. Propostas como a Mídia Ninja são ensaios de salto de qualidade em possibilidades ainda pouco aproveitadas pelo movimento social organizado.

A pronta criminalização por parlamentos estaduais do uso de máscaras em manifestações – a máscara é característica do criminoso – registrou igualmente a sinergia perfeita e imediata entre os órgãos legislativos do Estado, os órgãos repressivos e a demonização das manifestações pela grande mídia. Sobretudo em um Estado em que a polícia mata e tortura sistematicamente, sobre a eterna justificativa ou desculpa das autoridades superiores de que não sabiam, é um direito indiscutível do manifestante não revelar sua identidade.

Correio da Cidadania: E como vê, especificamente, a atuação de grupos como os Black Blocs, que também têm se destacado e despertado polêmicas na cena política?

Mário Maestri: É inegável que alguns atos indiscriminados de depredação urbana foram produzidos por jovens que se colocam como parte do campo popular e da esquerda, não raro se reivindicando da ideologia anarquista – certamente do anarco-individualismo, que conheceu derrapagem terrorista , e não do anarco-sindicalismo. Defendem explicitamente uma didática e uma estética da violência, de pretenso cunho político, materializadas na depredação de vidraças de bancos, de prefeituras, de assembleias legislativas e outros símbolos do grande capital e de poder político legislativo e administrativo, que, com razão, são crescentemente odiados por segmentos populares.

Paradoxalmente, a midiatização exacerbada e interessada desses atos tende a alimentar e fortalecer sua prática por frações politicamente atrasadas da juventude, inebriadas por um possível protagonismo, que nos fatos parasita o movimento de massas ao qual aderem formalmente. Protagonismo que disputa indiscutivelmente a hegemonia ao movimento de massas. Essas práticas se fortalecem devido à falta de alternativa política e à lumpenização material e cultural à qual o capitalismo lança parte significativa da juventude.

A destruição enquanto estética, didática e prática sistemáticas é própria de segmentos médios radicalizados ou marginalizados, que veem nos objetivos ou nos símbolos que destroem fetiches que os atraem, mas pelos quais são rejeitados na esfera do consumo, e desconhecidos, na da produção. Ela é estranha ao mundo do trabalho, sobretudo organizado, que se objetiva e subjetiva através da construção social – e não da destruição – dos bens materiais e imateriais, e de cujo gozo é fortemente alienado.

Correio da Cidadania: Como podemos definir o fenômeno Black Bloc?

Mário Maestri: O Black Bloc é a organização de jovens por afinidade, em torno de núcleos organizados, facilitada pela mídia social. São, sobretudo, produto da derrapagem de sentimentos antissistema e de tendências protagonistas de jovens radicalizados ou simplesmente atraídos pela destruição e pela violência, em um mundo que não lhes oferece sequer como possibilidade longínqua a perspectiva e o prazer da construção e autoconstrução. A esses grupos se juntam indiscutivelmente provocadores e jovens marginalizados atraídos pela prática da violência.

Na França, a cada ano novo, centenas de automóveis são simplesmente incendiados por jovens da periferia parisiense e das grandes cidades das províncias. Após isso, recolhem-se à vida degradante e excludente das grandes periferias urbanas em que vivem embretados centenas de milhares de jovens pobres e sem trabalho, em boa parte de origem extra- francesa, mais ou menos distantes, não raro com crescente escolarização.

Do reconhecimento das origens sociais desses comportamentos, não podemos e não devemos promover sua elevação ao status de ação política progressiva. É indiscutível a utilização de tais atos contra o movimento social, do qual o Black Bloc disputa o protagonismo, desviando e enfraquecendo o seu sentido político e social. São indiscutíveis a infiltração e a manipulação policial e política desses grupos, mesmo devendo seu surgimento às razões assinaladas. O movimento social deve defendê-los, se necessário, mas criticando esse tipo de atuação e, sobretudo, delimitando as fronteiras políticas e geográficas com os mesmos.

Correio da Cidadania: Nesse contexto, como enxerga a luta contra a repressão policial violenta das manifestações populares? A desmilitarização da polícia, bandeira hoje na boca de tantos coletivos, teria papel nesse processo?

Mário Maestri: A discussão do fenômeno do Black Bloc é dificultada porque, aqui e ali, esses grupos confrontam-se com as forças policiais que reprimem violentamente o direito inalienável de manifestação e demonstração política e sindical da população. Contudo, mesmo nesse caso, desempenham papel nefasto, ao se apresentarem como falso sucedâneo da necessária organização da autodefesa das mobilizações populares.

Nesse sentido, as organizações políticas de esquerda, como o PSTU, que criticarem grupos como o Black Bloc , sem proporem e avançarem a autodefesa organizada das mobilizações, que proteja os manifestantes e estabeleça os limites geográficos e políticos das demonstrações, professam apenas pacifismo intrínseco, absolutamente estranho à tradição do mundo do trabalho, em indiscutível processo de acomodação às instituições dominantes.

Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam. Prática que demonstrará, igualmente, que somente uma população organizada consegue conquistar mais paz e mais ordem, ao limitar e reprimir o poder de intervenção das forças policiais, agentes da desordem, sobretudo em um Estado que pratica histórica, sistemática e impunemente a violência contra sua população.

O princípio da auto-organização da defesa das manifestações, para obter e manter o direito de manifestação e a ordem pública, diante de Estado promotor da violência e da desordem, aponta igualmente para a exigência da desmilitarização da polícia e sua colocação sob o controle e a vigilância diretas das comunidades organizadas, às quais a polícia deve apresentar contas e se submeter. Apenas o exercício da autovigilância e do autocontrole dos locais de moradia e de trabalho, por seus próprios membros organizados, permitirá minimizar a violência urbana e extra-urbana, democratizando tendencialmente a sociedade.

Correio da Cidadania: Você não enxerga, portanto, avanço qualitativo das forças populares no Brasil, quanto à organização e às políticas, depois de junho. Que medidas ou atitudes seriam, então, essenciais para capitalizar um cenário de efervescência política e social?

Mário Maestri: A reconquista parcial da situação pré-junho, que certamente não conseguiu, ainda, dissolver as conquistas no nível de consciência e das práticas de importantes parcelas da população, registra-se na atual recuperação da avaliação positiva da presidenta, favorecida pela tímida expansão econômica, pela manutenção do emprego, por medidas como o Mais Médicos e pela denúncia na ONU da ingerência estadunidense. Nem que, aparentemente, tudo parece retornar como “dantes, no quartel de Abrantes”!

A negativa da Justiça de reconhecimento do partido de Marina Silva, que a obrigou a apear de sua demagogia anti-partido/anti-política, circunscreve o apoio do grande capital ao petismo e ao seu programa de escorcho social e alienação dos bens públicos e nacionais – salários irrisórios; privatização dos portos, aeroportos, petróleo, comunicações etc. Tudo sugere a reeleição da Dilma Rousseff, talvez sem segundo turno, em 2014, caso não tenhamos acidentes de percurso, é claro.

As atuais mobilizações possuem caracteres distintos em relação às multitudinárias de junho. De menor significado e repercussão, temos por um lado movimentos estudantis e urbanos diversos, ainda sob a influência e impulso dos sucessos de junho. Por outro lado, importantes e combativos movimentos de segmentos assalariados médios, como os dos bancários; os dos trabalhadores do Correios; os dos professores, com destaque para os do Rio de Janeiro, que transbordam os marcos da reivindicação profissional. Eles expressam o mal estar social nascido de arrocho salarial e da degradação das condições de trabalho e de existência – elevadas jornadas de trabalho, saúde, educação, mobilidade urbana etc.

Todas essas lutas certamente sofreram influxos positivos das jornadas de junho, que esgotaram relativamente seu dinamismo, como tendem a se esgotar esses importantes combates singulares, sobretudo devido à inexistência, sequer como tendência clara, de movimento de unificação regional e nacional, política e orgânica, dessas lutas. Ou seja, não se vislumbram órgão sindical centralizado e partidos de classe capazes de proporem e dirigirem essa imprescindível unificação e centralização, capaz de enfrentar um Estado do capital, ferreamente centralizado e unificado, sobretudo quando se trata de impor a exploração e reprimir as lutas e reivindicações sociais. Vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins do anos 1980.

A proposta da unidade sindical dos trabalhadores e assalariados, em torno de poderosa central sindical, foi liquidada pela ação do Estado burguês coadjuvado pelas organizações de esquerda com alguma força. Como as igrejas evangélicas, as centrais sindicais transformaram-se em espécie de caça-níqueis maravilhosos, capazes de gerar enormes ganhos econômicos, das quais nenhum grupo político com alguma força abre mão. Atomização e fatiamento que debilitam política e organicamente a luta e a organização dos trabalhadores. A mera centralização qualitativa dos trabalhadores em uma só central sindical fortalece ideologicamente o movimento e cria as melhores condições para mobilizações que questionem as direções pelegas. A atomização sindical é literalmente contrarrevolucionária.

Os partidos que se definem de esquerda também foram absorvidos pelos prazeres da gestão, mesmo marginal, do Estado burguês. A conquista de posições parlamentares e suas benesses embriagaram, sem exceções, os principais partidos da esquerda no Brasil, que literalmente nada têm a dizer, a não ser retoricamente, ao mundo do trabalho. Preocupam-se essencialmente com a participação nas próximas eleições, para conseguirem eleger mais alguns deputados e vereadores, os que já os têm, e obter os primeiros parlamentares, os que não os têm.

No Rio Grande do Sul, no contexto da enorme repressão do senhor Tarso Genro aos professores da rede de ensino público estadual, aos quais nega o próprio piso legal, a senhora Vera Guasso, presidente estadual do PSTU, aceitou convite para sentar-se no canapé do governador, para desdramatizar um excesso dos órgãos policiais do Estado (perquirição policial de moradia de militantes) contra o movimento social dos tantos que já se transformam em norma também no Rio Grande do Sul. No que foi seguida imediatamente pela presidente regional psolista! Tudo para obter um reconhecimento e respeitabilidade institucionais capazes, talvez, de avançar os escores eleitorais.

 

A Militarização do Discurso

A cada dia que passa, fica mais visível o pobre viés editorial da dita grande imprensa. É impressionante a falta de capacidade ou de boa fé dos jornais e portais de alto alcance e investimento em cobrir um momento histórico, político, cultural e social tão ímpar, inédito e rico de fatos, debates, idéias, disputas e reflexões. Eu me pergunto: que tipo de força apaga qualquer resquício de senso crítico em tais editorias, a ponto de todos os acontecimentos e debates serem tratados de uma forma maniqueísta, reduzindo uma questão infinitamente complexa a um roteiro enlatado hollywoodiano?

O quê se vê é a redução de um levante popular a uma batalha épica entre o “bem e o mal”, quando na verdade não há “bem e mal”, mas forças políticas com diferentes representações na sociedade, que cometem erros e acertos. A abordagem raramente permite esse tipo de reflexão, ao contrário, dá uma formula mágica (entenda-se bélica, jurídica e aterrorizante) para interpretar os fatos noticiados. E esse é o caminho mais curto para a manipulação do imaginário e da opinião pública.

Isso pôde ser visto, por exemplo, no caso da agressão ao coronel Reynaldo Rossi, ocorrida na última sexta-feira, no terminal Parque Dom Pedro, durante manifestação pela tarifa zero. Na ocasião, diversos manifestantes black blocks cercaram o militar e o golpearam, causando graves ferimentos no oficial e uma comoção generalizada da imprensa. Ao deparar com uma matéria publicada no portal Terra, me senti como se estivesse lendo um perfil de uma provável reencarnação de Jesus Cristo, a história de um velho hippie que sobrevive desde os anos 60 graças a uma floricultura montada no quintal de casa ou algo do tipo. A forma como foi descrito o coronel direcionava claramente a interpretação do texto para esse lado. Sejamos um pouco menos ingênuos, por favor.

É bem verdade que houve um uso desproporcional da força por parte dos manifestantes e, como defensores dos direitos humanos que somos, nós comunicadores não deveríamos nunca nos posicionar a favor de uma agressão brutal como essa. Mas um fato desta complexidade merece uma abordagem um pouco mais aprofundada. E refrescando a memória dos coleguinhas, vale lembrar que o coronel Rossi foi o comandante da operação “anti-manifestação”, lá atrás, na noite de 13 de junho, quando dezenas de jornalistas foram atacados pela Tropa de Choque, sob as ordens deste senhor. Naquela noite, o fotógrafo Sérgio Silva foi ferido nos olhos por uma bala de borracha atirada por um dos homens de Rossi e acabou cego. Uma fotógrafa da Folha também foi atingida nos olhos. Jornalistas eram revistados, presos para averiguação e até atacados fisicamente se portassem qualquer equipamento de proteção, como capacetes, máscaras de gás e vinagre. E mesmo assim os coleguinhas não se posicionam de uma maneira mais incisiva a respeito dos fatos. Mas tudo bem, seria pedir muito. Afinal, “tenho que garantir o meu, né? O mercado está muito ruim para todo mundo”.

Tudo bem, exigi demais. Mas então por que não podem simplesmente oferecer uma análise só um pouquinho mais crítica e menos maniqueísta? Ou dar a mesma atenção para tantos casos de abusos cometidos pela polícia militar contra jornalistas, advogados e manifestantes, pra não falar da imensurável barbárie nas periferias, longe dos holofotes? Ou sobre as revistas desumanas, como num caso fotografado recentemente no Rio, em que há uma garota cercada por policiais e sendo revistadas por um deles, homem. Detalhe: ela aparece arreando a calça e a calcinha, enquanto o agente do Estado usa uma lanterna para averiguar suas partes íntimas. Por acaso isso não é digno de ser noticiado pelo grande partido político que se tornou a imprensa corporativa brasileira? Até quando nossos comunicadores continuarão fazendo eco para as idéias mais baixas e obscuras presentes na nossa sociedade? Fazendo o bom e velho coro fascista, aquele que visa pautar os comportamentos e táticas de uma luta social da qual não faz parte, por falta de interesse e de sensibilidade?

Não estou dizendo para aplaudirem toda e qualquer coisa que venha das ruas. O apelo é para que nosso trabalho simplesmente não seja esvaziado por políticas editoriais maniqueístas e panfletárias e que, sendo a favor ou contra determinada pauta ou fato ocorrido, nosso dever é analisar com um mínimo de crítica. Deixemos os coros histéricos para os medíocres, a não ser que nossa escolha seja a de seguir o mesmo caminho de sensacionalismo e mediocridade.

Falei.

Raphael Sanz é jornalista.

Correios da Cidadania

Vandalismo e minhocas

Provavelmente, quase todos acompanham a cobertura da TV sobre as últimas manifestações de rua em São Paulo e no Rio, principalmente as do dia do professor. Já houve algo também depois desse dia. A partir do que se assiste, surgem minhocas na cabeça.

Em primeiro lugar, há uma certa "economia" das notícias sobre as manifestações dos professores, reivindicando condições mais dignas de trabalho. Também se vê que a TV mostra planilhas de salários, projetando hipotéticos reajustes, das quais só se pode duvidar. Parece que elevam os valores para dar impressão de que os professores querem muito.

Em segundo lugar, vê-se que são mostradas imagens daqueles a quem a imprensa amiga combinou chamar de “vândalos”. Estes, de rostos cobertos, seriam sempre os primeiros a agredir a polícia, que, então, "legitimamente" revida. São também os tais “vândalos” que promovem quebradeira do que encontram na rua. É interessante observar o que os mascarados quebram e/ou queimam: orelhões, lojas, vidros da prefeitura e/ou Câmara, ônibus de transporte urbano, viaturas policiais, uma ou outra estação do metrô e, sobretudo, agências bancárias. Em outras palavras, símbolos de serviços públicos mal prestados, da corrupção, da truculência e da propriedade privada opressiva e corruptora.

Sem julgar o acerto ou o erro dos manifestantes, é possível ver lógica, um fio condutor nisso. Os "vândalos" atacam o capital e o poder público que lhe dá proteção. Não se costuma ver casos desses mascarados queimando carros particulares estacionados nas ruas. Nem residências. Nem atirando pedras em qualquer pessoa que encontram pela frente.

Se for isso mesmo, esses manifestantes têm um alvo determinado. Não é que saem às ruas porque não têm coisa melhor pra fazer. Ou para pegar carona nas manifestações dos professores, embora seja interessante que justamente os coitados dos professores sejam uma das categorias mais maltratadas pelo capital e pelo poder público, simultaneamente.

Mas então. Esses manifestantes são insistente e deliberadamente rotulados de “vândalos” pela TV amiga. É claro que esta não diz que o termo é inspirado num povo germânico, aliado dos godos, e que foi aproveitado por um bispo francês para criticar o que entendia por violência dos revolucionários de 1789, que queriam – e conseguiram – derrubar a ordem estabelecida. É preciso não deixar ninguém se lembrar disto e, mais ainda, descaracterizar qualquer lógica nas suas atitudes, chamá-los de irresponsáveis. Porque é fundamental não chamar a atenção para o eixo do seu protesto.

Qualificá-los de violentos é uma estratégia. O brasileiro adora dizer que é contra a violência, embora o Brasil tenha uma das sociedades mais violentas e excludentes, que o diga Marilena Chauí. Segundo ela, quando percebe a violência, o brasileiro médio a explica como coisa “dos outros”, sejam quais forem esses “outros”. Preferencialmente, são os do andar de baixo.

É didático lembrar que o capital é também muito violento. Pra falar só do varejo, veja-se o caso de um banco, com seus juros contra o cliente, os pacotes de produtos inúteis que este é forçado a comprar. Se ele dever um centavo, o banco o retira de qualquer depósito que recebe, até mesmo se for salário. É um assalto refinado e seguro, o assaltante usa gravata e atua no ar condicionado.

Os Detonautas já cantaram isso. O assaltante, curiosamente, aqui é também uma vítima: das metas que tem para cumprir, do assédio moral que sofre no ambiente de trabalho, dos baixos salários, do perigo de perder a vaga para um concorrente do exército bancário de reserva. O professor é refém dos mesmos perigos e, frequentemente, encontra chefes que, embora igualmente professores, assumem o discurso dos “donos da loja” (é loja mesmo), talvez para garantir o cargo. E por aí vai.

E pra terminar: a violência policial na rua não mostra diferença daquela que atuava na repressão ao movimento estudantil, há trinta e tantos anos, apesar da nova Constituição, do Estado de Direito etc. etc.

Plínio Gentil, doutor em Direito (PUC-SP) e em Fundamentos da Educação (UFSCar), é professor universitário de Direito Penal, Processo Penal e Ciência Política, Procurador de Justiça criminal no Estado de S. Paulo, integrante do Movimento do Ministério Público Democrático e vice-presidente da Associação de Proteção à Cidadania (APC).

Correio da Cidadania

‘O patrimônio público está sendo entregue aos grupos econômicos, sem contrapartida e compromisso'

Na segunda parte da entrevista com o engenheiro Ildo Sauer, o Correio da Cidadania discute a direção que o governo tem dado para outras áreas essenciais da infraestrutura do país. Assim como no caso do pré-sal, são segmentos e riquezas que estão passando por mudanças de gestão, com o financiamento dos fundos públicos.

“Infelizmente, não temos um governo com visão estratégica, e nem projeto de país, a fim de buscar uma base de ampliação dos benefícios sociais, a criação de autonomia, o fim das assimetrias. O plano tem de ser outro. Os recursos para fazer isso são exatamente os recursos naturais e os recursos tecnológicos, desenvolvidos, por exemplo, no seio da Petrobras ou no sistema Eletrobras. Estamos entregando tudo em nome de um modelo que não existe”, lamenta Sauer.

A entrega do patrimônio público estaria caminhando além da propriedade das empresas estatais de grande porte, atingindo a própria riqueza, sempre através de modelos que passam longe de gerar excedente econômico com destinação social. “Interessante lembrar que a candidata Rousseff dizia: ‘é um crime privatizar o pré-sal e a Petrobras'. Pois ela está fazendo as duas coisas: quebrando a Petrobras e privatizando o pré-sal. E privatizando energia elétrica, porque é mais fácil para o empresário ter o direito de consumir energia do que ser o dono das usinas, operando-as e mantendo-as”, alerta, apontando para o sacrifício imposto a Furnas e Chesf ao se rebaixarem as suas tarifas (já em vias de reajuste), ao mesmo tempo em que se preservaram os índices de lucro dos empresários do setor.

A queda livre dos negócios de Eike Baptista, que, a despeito de todas as benesses púbicas que recebeu, fracassou na gestão de seus negócios, seria, segundo Ildo, bastante reveladora desse modelo de gestão do capitalismo brasileiro. “Eu diria que há uma certa sinergia entre os dois (Eike e Dilma). S ão dois postes que subiram como foguetes, impulsionados pelo apoio da publicidade e do dinheiro público, que agora se desintegram na atmosfera empresarial e política, como verdadeiros meteoritos que caem, deixando a luz da destruição”.

O professor de eletrotécnica da USP e um dos autores do programa energético democrático-popular no primeiro mandato de Lula prevê um cenário de incertezas, cujas expectativas políticas não são animadoras. “Num momento de crise, numa sociedade de democracia ainda tênue, como é a brasileira, e com as forças políticas muito mais organizadas e alinhadas à direita e em favor do capital, obviamente está representado o risco de um enorme retrocesso”, diz ele, sem deixar de acusar a manipulação do processo eleitoral, com o jogo de registros e negações de novos partidos.


A seguir, entrevista completa.

Correio da Cidadania: Após os acontecimentos e discussões recentes relativos ao leilão de Libra, não há como esquecer de outros setores-chaves de nossa da economia. No caso das rodovias, por exemplo, o baixo número de candidatos interessados em participar de novas concessões rodoviárias tem sido atribuído pela mídia corporativa a um ambiente de dúvidas gerado pelo que chamam, novamente, de ‘dirigismo estatal' e também à insuficiência de incentivos e subsídios públicos. O que pensa desse contexto todo que envolve as nossas infraestruturas econômicas?

Ildo Sauer: Todos estes processos expõem que o modelo seguido pelo governo Rousseff não serve aos propósitos maiores da sociedade brasileira. Está tudo muito claro, através desses pequenos acertos, improvisos, idas e vindas nos projetos de concessões. E, acima de tudo, é assustador saber que o documento da Casa Branca, de 30 de março de 2011, cita claramente o acordo firmado por Dilma Rousseff e Obama como um dos pilares, ao lado de outros sete pontos, pelos quais se pretende garantir a segurança energética norte-americana e maiores excedentes econômicos para os países consumidores, o que obviamente indica que virão atrás dos recursos naturais. É chocante, assustador.

Portanto, é evidente que o modelo privatista seguido pelo governo renuncia a toda e qualquer gestão pública. A Petrobras, por exemplo, é um modelo de empresa pública, com capacidade de organização, planejamento e gestão, mas o governo está destruindo isso. O que se vê também nas estatais elétricas, quando se dilapidaram 9 mil Megawatts (MW) dos 11 mil MW de Furnas, pra entregar energia abaixo do custo de operação, comprometendo recursos para a manutenção. Neste caso, afetando a Furnas (com quase 80% de perdas de recursos) e Chesf (menos afetada, com perda de 45% de seus recursos geradores).

A exemplo ainda do que ocorre com o excedente da renda do petróleo, tampouco se direcionam tais valores à educação pública. Não. Só se subsidia a ganância de grupos econômicos, que não irão reverter nada em inovação tecnológica, nem em geração de empregos, nem em compromisso de modernização produtiva. Nada.

De modo que, a visão estratégica está ausente nos grande setores de infraestrutura. A visão geopolítica está ausente, assim como está ausente o plano de construção de uma sociedade diferente, mais justa e igualitária, a partir dos recursos que nós dispomos. Como disse antes, ao longo da história, desde que o Brasil foi colonizado, a começar pelo pelos ciclos do pau-brasil, da cana de açúcar, do café, da borracha, passando pelo saque da prata, do ouro e de outros recursos minerais (mais recentemente com o ciclo mineral e da agroindústria, e agora o petróleo), tudo continua colocando o país na mesma condição: de dependência associada e subordinada.

É o que acontece, mesmo que o Lula tenha aberto espaço para os “campeões nacionais”, que atuam aqui ou no exterior muitas vezes como empresas puramente capitalistas, na condição de exploradores nos países da América Latina e da África. Tais grupos brasileiros, criados aqui, vão para onde tiver mais retorno, seja China, EUA, Europa, África, América Latina, sem nenhum compromisso direto com a transformação produtiva, social e cultural da sociedade brasileira.

Correio da Cidadania: No que se refere ao setor elétrico, por você citado, a renovação da concessão das geradoras de energia de fato se deu em troca da redução das tarifas, outro dos imbróglios em torno aos setores de infraestrutura econômica. O que mais você diria mais sobre o futuro do nosso setor elétrico?

Ildo Sauer: Como eu disse, a maior afetada foi a Furnas, privada de 9 mil Megawatts (MW) de seus 11 mil. Era a maior geradora brasileira, que agora vai operar recebendo em torno de 7 reais o MW/hora, menos que o necessário para operação e manutenção. Enquanto isso, a Chesf foi privada de cerca de 45% de sua energia, vendendo-a apenas a custo de operação. Tudo por menos de 10 reais + impostos, ao passo que os grandes geradores privados continuam vendendo energia a 180, 200 reais o MW/hora, ou seja, por vinte vezes mais. Tudo isso é um grande mix que só favorece os grandes empresários e grandes consumidores residenciais – aqueles com renda mais elevada.

Volto a citar um exemplo dramático e revelador de como é regressivo o modelo: um empresário do Maranhão, que consome energia por 5000 reais ao mês, teve um desconto inicial da ordem de 20%; portanto, economizou 1000 reais. A empregada, ganhando salário mínimo, pagava 60 reais na conta - teve um desconto de 12 reais.

No entanto, a máquina de aumentar os preços já está de pé. O processo de reajuste tarifário comandado pela Aneel está recolocando as tarifas em patamares onde tais descontos já não existem mais. E no lado industrial, os grandes empresários -que ao longo de mais de uma década se beneficiaram do mercado livre, ao comprar energia entre 18, 20, 22 reais o MW/h, que custava 80, 90 reais nas estatais - passaram a fazer pressão e a chantagear o governo a partir do momento em que a sobra de energia desapareceu. E eles apenas estão aumentando seus lucros, sem o compromisso de gerar mais emprego, modernizar a tecnologia, investir em áreas estratégicas, para oferecerem benefícios tarifários. Esse é o desastre que o modelo da senhora Rousseff causa contra o interesse público.

Interessante lembrar que a candidata Rousseff dizia: “é um crime privatizar o pré-sal e a Petrobras”. Pois ela está fazendo as duas coisas: quebrando a Petrobras e privatizando o pré-sal. E privatizando energia elétrica, porque é mais fácil para o empresário ter o direito de consumir energia do que ser o dono das usinas, operando-as e mantendo-as. Mesmo que as receba de graça.

Portanto, no modelo feito pela Dilma, esses 15 mil MW – mais ou menos 9 mil de Furnas e 4 mil de Chesf e outros, um patrimônio público, pela lei pertencente ao Tesouro Nacional – foram um benefício simplesmente doado. É mais grave do que doar as próprias empresas. Porque, agora, as estatais têm o ônus de operá-las e mantê-las, e depois entregar a energia a custo de operação, ao invés de o dinheiro ir para a população, na qual ainda existem 2,5 milhões sem energia elétrica – apesar da propaganda do Luz Para Todos . Muitos não têm acesso à educação pública, à saúde publica, e o patrimônio público, protegido pelo artigo 20 da Constituição, está sendo entregue aos grupos econômicos, sem contrapartida e compromisso.

Assim, a metamorfose do governo na área da energia se revelou um verdadeiro desastre para o desenvolvimento equilibrado do país.

Correio da Cidadania: E nesse mesmo sentido, o governo já aventou mudar as condições para as novas concessões no setor aeroportuário, no caso, o aeroporto de Confins em Belo Horizonte. Qual a sua visão, neste caso?

Ildo Sauer: O governo, mesmo dentro do seu modelo (sendo que há outros modelos melhores), perdeu totalmente o poder de decisão. Seu poder de não se subordinar a chantagens de grupos é muito baixo. Aí reclama da taxa de retorno mais elevada. Note bem: o capital que vai entrar, nos aeroportos, nas rodovias, em outros investimentos, nos famigerados estádios, vem todo da poupança pública. Principalmente do BNDES, mas acessoriamente da Caixa e do Banco do Brasil. Dinheiro da poupança e do endividamento públicos, redirecionado. E os que vão geri-lo, ao aplicá-lo nesses empreendimentos, obtêm uma taxa de mediação (ou taxa de arbitragem) elevada, em nome do que se chama de “capacidade de gestão e de assumir riscos”.

Há modelos melhores, mas infelizmente não temos um governo com visão estratégica, e nem projeto de país, como o que foi defendido a partir dos anos 80, na transição da ditadura para a democracia, a fim de buscar uma base de ampliação dos benefícios sociais, a criação de autonomia, o fim das assimetrias. E não a dependência, como aqui. Os necessários investimentos em Bolsa Família, pra reduzir a fome, hoje não são mais toleráveis como solução. O plano tem de ser outro. Os recursos para fazer isso são exatamente os recursos naturais e os recursos tecnológicos, desenvolvidos, por exemplo, no seio da Petrobras ou no sistema Eletrobras. Estamos entregando tudo em nome de um modelo que não existe. Um modelo completamente dissociado das premissas sobre as quais foi construído o projeto democrático-popular, que começou liderado pelo Lula nos anos 80, para chegar ao governo em 2003 e negá-lo, nessa metamorfose absoluta a que assistimos.

E a dificuldade maior está exatamente na ausência de um debate amplo e aberto na sociedade, com uma espécie de censura que impede os brasileiros sequer de tomarem conhecimento do que está em disputa. Muito menos tomarem conhecimento do real e profundo significado do que se passa, de maneira que possam participar do processo decisório, indo às ruas, entrando na justiça, protestando, reclamando e construindo uma alternativa. Mas esse é o quadro.

Como eu digo, temos uma grande história de lutas. Até agora, o que mais colhemos foram derrotas. Mas não significa esmorecer. Sinto orgulho de tais derrotas, porém, teria vergonha se estivesse do lado dos “vencedores”, pelas causas que defendem em suas vitórias. É assim mesmo. Vamos em frente, construindo a consciência popular, construindo o debate aberto, democrático, amplo, o que só é possível quando há educação pública, saúde pública e condições de vida concretas, diferentemente do que assistimos hoje, apesar de toda a propaganda.

Correio da Cidadania: Como vê o governo Dilma e suas perspectiva eleitorais, diante do cenário eleitoral que tomou conta do país nas últimas semanas? Acredita no tal do fôlego maior que ganhou a economia nacional - com as notícias recentes sobre crescimento do PIB, o aumento de emprego formal, menor inflação e a persistência de uma taxa de juros menor nos EUA (possibilitando contornar por um tempo maior a fuga de capitais internos) - e seu possível impacto na recuperação da popularidade da presidente?

Ildo Sauer: É difícil ter uma visão clara do que vai acontecer, pois dependerá muito da economia e da manutenção do nível mínimo de democracia. No momento, vemos novos partidos políticos terem seu acesso ao processo eleitoral – acesso que foi impedido à Rede de Sustentabilidade, da Marina. Portanto, o governo está manipulando até o processo eleitoral, que em si já não é democrático, não é aberto. O dinheiro é concentrado, assim como o tempo de televisão. Não há eleições primárias, que impeçam o caciquismo, com seus chamados líderes, que na verdade não passam de caudilhos, urbanos ou rurais, comandando os partidos como instrumentos de negócios e partilha do país.

Neste contexto, o processo eleitoral não é democrático, porque dificulta o acesso ao debate amplo, fora dos padrões já estabelecidos e construídos. O tempo de mobilização e televisão são uma deterioração da prática política, de forma que é difícil prever o cenário.

De qualquer maneira, acho que a evolução econômica será decisiva, e o quadro não parece dos mais alvissareiros. O que explica a tentativa do governo de tentar recompor seu caixa com o bônus de assinatura de 15 bilhões de dólares da venda do campo de Libra, permitindo recuperar um pouco as contas e talvez ter problemas menores do que aqueles que se avizinham.

De toda forma, tudo indica que o ano de 2014 poderá oferecer grandes emoções. E enormes riscos também. Porque se sabe que, num momento de crise, numa sociedade de democracia ainda tênue, como é a brasileira, e com as forças políticas muito mais organizadas e alinhadas à direita e em favor do capital, obviamente está representado o risco de um enorme retrocesso. Maior do que aquele que já estamos vivendo sob comando do governo que se metamorfoseou, de Lula para Dilma, em favor do capital.

Correio da Cidadania: Em face desse cenário, qual a sua expectativa quanto à organização dos setores progressistas e mais à esquerda, de forma a fazer um contraponto e avançar no debate político e eleitoral?

Ildo Sauer: Eu tenho defendido historicamente que se busque construir um programa mínimo em torno de uma frente de esquerda, capaz de levar à sociedade os debates colocados aqui nesta entrevista - ou seja, a questão da apropriação social dos recursos naturais, do avanço dos direitos sociais, da organização da capacidade produtiva do Brasil, revertendo a atual apropriação privada dos recursos sociais (que depenam a produtividade social do trabalho), a fim de melhorar a condição concreta de vida do trabalhador.

Apesar de toda a propaganda, sabemos que temos enormes assimetrias. A educação pública está estagnada; o avanço da participação das mulheres está estagnado etc. Enfim, os problemas continuam seriíssimos. E tudo poderia ser objeto de um programa mínimo da esquerda brasileira, a exemplo do que aconteceu em outros países, na própria América Latina, onde uma frente, sem interferir na autonomia dos partidos, conseguiu avançar no debate e mobilizar a população, no sentido de construir uma história diferente da que estamos vivendo no Brasil.

Esta é minha proposta e por isso faço o apelo para que todos os partidos de esquerda se juntem em nome de um programa mínimo, façam um plano nacional de desenvolvimento social. Que as causas, como a do petróleo, por exemplo, possam mobilizar, como mobilizaram muitos anos atrás, corações e mentes em favor de um projeto nacional. Um projeto brasileiro voltado à solução das questões materiais, concretas, sociais e culturais da população brasileira. Vejo como a única saída. E o quadro não deixa muita esperança ou expectativa positiva.

Correio da Cidadania: Finalmente, o que o caso Eike Baptista diz do modelo de desenvolvimento que tem sido perseguido e do próprio capitalismo brasileiro?

Ildo Sauer: É algo de causar absoluta perplexidade. Mas não muita. Foi um grande fiasco. Ele teve todo o apoio do governo e das estatais, teve acesso a blocos privilegiados, fez o processo exploratório, encontrou petróleo e não teve a capacidade de superar as dificuldades. Isso porque era um petróleo muito pesado, portanto, difícil de extrair, numa matriz de reservatório extremamente fechada, chamada tight oil , que exige tecnologia mais avançada do que a convencional pra liberar o petróleo. E não foi capaz de fazê-lo, a plataforma que ele colocou em operação fracassou.

No entanto, mesmo assim, ele teve o privilégio de tirar uma foto ao lado da presidente da República, vestindo orgulhosamente um macacão da OGX, como se fosse o símbolo nacional. Foi a primeira vez na história do Brasil que um presidente da República se prestou ao papel de comparecer a uma instalação privada de produção, que depois se saberia estar ancorada num processo de gestão, planejamento e privilégios inaceitáveis.

E o que fizeram a ANP (Agência Nacional de Petróleo) e a CVM (Comissão de Valores Mobiliários)? Todo mundo sabia que este senhor Baptista anunciava descobertas, entregava os documentos à ANP, que os aceitava e, por conseguinte, os legitimava. De outra parte, fazia comunicados de abertura de capital, de negociações, e a CVM também os aceitava no mercado aberto de capitais. Onde estava o governo, que permitiu a imensa fraude e fiasco?

Portanto, nem com os privilégios o senhor Eike foi capaz de se sustentar, como os oligarcas russos, que tiveram privilégios semelhantes aos dele na transição do comunismo para o governo Ieltsin – desfeitos pelo governo Putin, que agora retomou o petróleo.

De maneira que este é o símbolo mais acabado do governo Dilma. Eu diria até que há uma certa sinergia entre os dois. Podemos projetar a seguinte figura: tanto Rousseff como Baptista são dois postes que subiram como foguetes, impulsionados pelo apoio da publicidade e do dinheiro público, que agora se desintegram na atmosfera empresarial e política, como verdadeiros meteoritos que caem, deixando a luz da destruição. Tanto o governo Dilma como a história empresarial do senhor Baptista deixam essa imagem no ar. Uma situação evidentemente sintética da realidade concreta e da tragédia da metamorfose política a que estamos submetidos no país.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

 

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